Coisas de nossa tevê em canal aberto. Começa ano, termina ano e ficamos sabendo da quantidade de recursos públicos empregados em campanhas contra o uso de drogas. Programas em horário nobre de diversas emissoras de tevê tratam do uso de drogas nas grandes cidades, investigam as razões que levam principalmente os adolescentes e jovens a buscar o uso de drogas, mostram a realidade dos morros e a vida e a morte de traficantes seja no Rio de Janeiro, em São Paulo ou no entorno da Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Mas, moto contínuo temos a novela das 9 da Rede Globo de Televisão – Passione – e com ela a força perniciosa e letal da deseducação em larga escala. O personagem vivido por Cauã Reymond é o típico viciado: mente não ser viciado, falsifica exame antidoping, incrimina o irmão caçula, rouba para pagar o vício, é estressado por natureza e estressa toda a família ou o que possa lembrar núcleo familiar em novela da emissora líder.
O personagem, como poderíamos esperar, não encontra qualquer limite ético, moral, familiar, físico ou financeiro para sustentar o vício. A busca por drogas será acompanhada por todos que seguem a novela. Explica-se, quase didaticamente, onde podem ser encontradas, os contatos que precisam ser feitos, os diálogos necessários e os cuidados para burlar as leis. A busca do realismo, marca comum a qualquer folhetim da Globo, confundirá nossos sentidos. E até que o personagem abandone o vício, por bem ou por mal, internado em clínica especializada ou preso em algum xadrez da cidade, veremos muita água mover os índices de audiência da emissora e milhares de jovens encontrarão certo glamour na vida de Danilo Gouveia. Boa parte destes se sentirá tentada a entrar no caminho sem volta apresentado como viável pelo personagem. Outra parte nem mesmo saberá diferenciar ficção de realidade.
E se Danilo superar o vício será algo a ocorrer nos últimos capítulos, repetindo-se a macabra equação: o crime e a injustiça campeiam toda a trama, centenas de noites a fio; e a redenção, a imposição da justiça, consumirá nada mais que um ou dois capítulos do folhetim. Então, os que por qualquer motivo não assistirem ao final da novela terão na mente apenas as lições dando conta de que nada compensa mais que a ilegalidade e os comportamentos doentios. É como o Papillon – personagem criado por Henri Charriére – no cinema vivido por Dustin Hoffman, nos anos 1970: o espectador passa quase três horas vendo-o comer o pão que o diabo amassou literalmente na Ilha do Diabo (Caiena, Guiana Francesa) para ver o gosto de liberdade em não mais que em seus três minutos finais.
O raciocínio acima vale para a quase totalidade das tramas globais transmitida em horário nobre nos últimos anos. O que lhe aumenta a audiência é precisamente o grau de nivelamento por baixo a que os personagens se esforçam por conceder verossimilhança. O campeão será aquele que fique da altura de uma lâmina de barbear deitada.
Mentira vencedora
Passione é veneno puro, alienação pura, maldade pura. E baixaria para todos os gostos, altitudes e latitudes. A galeria de tipos representa o que há de mais miserável na espécie humana. Começa por filho destratando (estou pegando leve) mãe e sempre a um passo da agressão física, já que a agressão verbal ultrapassa todo e qualquer limite do que poderia ser o diálogo entre um filho e uma mãe. Refiro-me a Werner Schunemman com o seu Saulo e a Fernanda Montenegro, com a sua Bete Gouveia. Até o momento a emissora ainda não nos brindou com cenas de espancamento explícito, aquelas em que Bete será surrada impiedosamente pelo filho.
A mulher de Saulo, vivida por Maitê Proença, é um poço de vida vazia e miserável, ninfomaníaca, mulher manipuladora e sem qualquer noção de ridículo, seduz jovens por shoppings da cidade, que obviamente trai o marido Saulo duas a três vezes por semana, trai a própria filha, tem caso com o caso da filha. O ar de sensualidade – com validade vencida – de Maitê permeia toda a novela, seus olhares são sempre fatais e obsessivos. Lembram os poemas de Pietro Aretino, filho de um sapateiro, contemporâneo de Leonardo da Vinci e Michelangelo, autor dos Poemas luxuriosos.
Aliás, não sei o que deu na Globo – todas as mães são vilipendiadas, desrespeitadas, humilhadas e ofendidas. E se forem avós, a possibilidade de serem aquelas que ofendem e humilham os demais será quase certa. Tem a mãe e avó Valentina (Daisy Lúcidi) que é cafetina, sempre apta a arranjar homens maduros para cliente de sua neta (Kelly), ainda adolescente, meio tímida e sempre assustada. A pressão psicológica exercida por Valentina sobre a neta é algo que supera qualquer escala de coisa despudorada, nojenta, asquerosa. Prostituição de menores bancada por membro da família merece ser abrigada no imenso guarda-chuva da liberdade de expressão?
Tem a mãe e avó (Cleide Yáconis) que adentrando seus 105 anos tem como único objetivo trair o marido Antero (Leonardo Villar) com o bonachão vivido por Elias Gleiser. Considerando que a idade somada dos dois artistas beira o bicentenário, há momentos em que o constrangimento nos faz querer mudar rapidamente de canal. A forma insidiosa com que Yáconis ludibria o marido deixa claro que se existe algo que não tem idade é o desejo de ser vulgar, sacana, o gosto irreprimível pela traição. Ajuda a destruir qualquer bom sentimento que as avós costumam inspirar como aquela angelitude espontânea, aquela bondade ilimitada emoldurada por respeitosos cabelos prateados. Tem a mãe que criou a neta como se filha fosse, caso da personagem Candê vivida pela veterana Vera Holtz. Provavelmente é a novela que leva às telas o maior número de pessoas da terceira e da quarta idades. Lastimável que em sua maioria são pessoas quando não patéticas, ao menos muito desmioladas.
Mariana Ximenes é a protagonista. Veste a personagem Clara Medeiros: uma mulher mentirosa, sem escrúpulos, que só quer tirar proveito das situações. Trabalhava como enfermeira do marido de Bete e será a única a escutar a revelação que o empresário faz à esposa antes de morrer. É neta de Valentina, a quem não suporta, e irmã por parte de mãe de Kelly (Carol Macedo), a única pessoa com quem parece ter um vínculo de afeição. Parece ter sido criada a partir da música de Reginaldo Rossi sobre aquela que iria trair o marido em plena lua de mel. E fez isso mesmo. Engana qualquer um que lhe cruze à frente. Mente com tanta naturalidade e sempre vê sua mentira vencedora absoluta. Ilude um e outro, rouba um e outro, simula incêndio para matar marido, incrimina colega de profissão, arquiteta planos mirabolantes, se vende na noite paulistana e mostra falta de caráter de forma cabal e completa.
Desfecho infeliz
Francisco Cuoco é Olavo, o rei do lixo. Pândego. É tão convincente em seu jeito canastrão que ninguém desperdiça alguns pensamentos do tipo "quem te viu, quem te vê". Sua mulher é Clô, tendo uma Irene Ravache que rouba as cenas em que aparece. É falante, boa praça, a recorrente crítica aos novos ricos que, segundo Vinícius de Moraes, "não têm a dignidade de enriquecer que os ricos tinham ao empobrecer". É a parte leve da trama, uma trama em que traição, inveja, mau caratismo, ciúmes, falsidade, deslealdade, drogas e desvios de conduta pontuam quase que cada cena e quase que cada fala.
Há outros personagens que não valem o feijão que comem. Tony Ramos é o marido traído uma vez e prestes a ser traído outras quinhentas vezes. É o cornuto da novela. Gemma Mattoli (Aracy Balabanian) é a irmã de Totó (Tony Ramos). Gemma, assim como o irmão, é brasileira de nascimento mas vive na Itália. Sincera, amiga e cheia de amor, criou Totó e cuida dele e de toda família com tanto amor que se esquece de sua própria vida. Aracy Balabanian empresta seu talento àquele tipo de irmã mais velha que muitos de nós têm, claro, aqueles que contam mais de 50 anos.
Reinaldo Giannechini é o próprio canastrão, como sempre deixando de convencer o telespectador pois não tem jeito de protagonista, seja mocinho ou vilão. Gabriela Duarte é uma viúva Porcina (vivida por sua mãe Regina Duarte na icônica Roque Santeiro) ainda não entrada em anos, a cada cena evoca algo de pastelão, besteirol. Marcelo Antony é o personagem deprê que não poderia deixar de dar as caras em uma novela de Sílvio Abreu. Talvez seu negócio seja pedofilia mas, quanto a isto, ainda não se tem certeza. Pelos rumos da trama, se for pedofilia é pouco – talvez seja o dono de uma rede mundial de pedófilos-empresários ou coisa assim. Tem também todo o núcleo dos italianos. Tem o Arthurzinho (Julio Andrade) que representa o homossexual afetado e folclórico, chamado por seu patrão Saulo como "a gazela". É deste o vocativo adulador "Milady" para designar a patroa, Maitê. Quantos anos não escutava a célebre expressão de Alexandre Dumas cunhada em seu imortal Os três mosqueteiros! Pena que não restem na novela vestígios de Porthus, Athos, Aramis e do quarto protagonista D´Artagnan. Mas aí já é querer muito.
Tem Fátima Lobato (Bianca Bin), que ainda muito jovem engravida e, sem contar com o apoio do possível pai da criança (Cauã), decide abortar. A busca por clínica de aborto, os contatos na clínica, o ambiente de franca ilegalidade, muita sombra e pouca luz termina por avalizar a idéia que, afinal, abortar não é tão má idéia assim. Uma pena esse pequeno desfecho feliz para uma situação que poderia, ao menos, ser outra, bastante diferente. Mas quem disse que tevê aberta tem algum tipo de responsabilidade social?
Vestes sagradas
Pelo que vejo, passar 10 dias assistindo a capítulos de Passione não terá sido de todo em vão. Aprendi que se a liberdade for total, sem qualquer balizamento, sem quaisquer princípios reguladores, viveremos apenas a liberdade dos animais e não a liberdade adequada a nós, humanos. Aprendi que não basta dispor de todos os recursos humanos e materiais, não basta deter tecnologia de ponta para por em funcionamento a fábrica de ilusões que atende pelo nome de núcleo de dramaturgia de nossas principais emissoras de tevê. Há que se lutar por um tipo de arte que eleve a condição humana. Onde foi parar o senso crítico da rapaziada? Será que nenhum anunciante encontrará alguma convergência com os pensamentos ora alinhavados?
Impressiona ver tantos talentos desperdiçados com uma trama que endeusa a pequenez humana, passa ao largo de todo e qualquer valor humano, desses que uma vez vividos nos fazem pensar que a vida humana é o bem mais precioso que podemos ter. Passione é um atestado de falência múltipla dos diversos órgãos que formam o organismo da sociedade atual, onde quanto mais anormal, mais desprezível for um ser humano, maior será sua aceitação pelos demais, e quanto menos virtudes humanas uma trama tiver, maior será seu êxito comercial.
Mas, como levantar o assunto sem ser acusado de tocar as sagradas vestes da... liberdade de expressão? Por que precisamos nos contentar com um banquete faustoso, amplamente publicizado, reunindo a nata da dramaturgia brasileira experimentada nos últimos 50-70 anos, e que nos serve em horário nobre, ao longo de vários meses, nada menos que comida estragada?
Fonte: Observatório da Imprensa