terça-feira, 7 de setembro de 2010
Passione! A indústria da telenovela no balizamento entre o merchandising social e o comercial
Por Jacqueline Lima Dourado*
As emissoras de televisão, enquanto indústrias culturais, desenvolvem processos estratégicos desenvolvidos que estão relacionados, muitas vezes, com temas ou questões que se reportam a situações enfrentadas por uma sociedade em diferentes domínios. Esses atuam desde a coletividade, no campo educacional, político, religioso, tecnológico e ambiental, como na esfera individual, em relação ao comportamento, práticas urbanas, solidariedade, usando para isso táticas de merchandising social, protagonismo social e marketing social.
A telenovela “das oito”, Passione (da Rede Globo, 21h:00min), retoma temas sociais, tais como dependência química, infidelidade, sexualidade, pedofilia, prostituição entre outros antes demarcados, somente, à esfera íntima. Com a mediação televisiva, migram para a esfera pública, proporcionando novas pautas e debates, além do agendamento de outras mídias.
Dessa vez, a Rede Globo afirma não fazer de forma mais explícita nenhum merchandising social. Contudo, retoma temas sociais que resgatam a prática especulativa do tema ao trazer o consumo e dependência de drogas ao enredo com alegorias bem peculiares, como a decadência física, desequilíbrio emocional, desagregação da família que servem de mote de discussão intra e extranovela. Traz ainda a esfera do debate temas motes como pedofilia, exploração e prostituição de menores. Essas abordagens não são colaterais ao enredo, mas a partir delas há um novo olhar sobre o tema da novela. Ressalte-se que os dois assuntos dominam noticiários e revistas no país.
Esses movimentos é o que chamamos de cidadania televisiva. Entendemos que, para adotar este conceito, é necessário concebê-lo como conjunto de temas voltados para os direitos sociais, educativos e morais presentes na programação. De alguma maneira, surge na grade, sob a forma de diferentes temas, problemáticas que, tradicionalmente, antes, não estavam inseridas. Começam a ganhar contornos próprios por meio de operações e estratégias peculiares, inerentes ao próprio regime e à discursividade da TV. Supomos que são escolhas deliberadas via agendas que a mídia faz para tratar simbolicamente, e, com sistematicidade, questões relativas a desafios enfrentados em dados momentos por determinada sociedade.
Ao observarmos o fenômeno por meio do eixo da Economia Política da Comunicação – EPC, avaliamos que, pela ordem capitalista contemporânea, tais injunções são absorvidas como alerta para a integração com outros agentes do capital, na tentativa de manter barreiras à expansão desmesurada de corporações comunicacionais. Qualquer que seja o país, a inserção da programação televisiva como elemento estratégico fortalece relações de poder, embora a função macro da comunicação midiática deva se restringir a acompanhar as mudanças sociais e não a produzi-las.
Também como elemento indissociável ao estudo está a ponderação acerca da postura do telespectador frente à programação da Rede Globo de Televisão. É preciso verificar se há espaço para a reflexividade ou se a grade somente fortalece eventuais mecanismos regulatórios, responsáveis por coletividades passivas e meramente consumidoras. Há indicativos de que esses mecanismos representam fonte de interferência na autonomia das pessoas e em sua capacidade de discernir sobre a participação em questões importantes à sua própria vida, tornando-as, cada vez mais, reféns dos ditames do modo de vida imposto pelas regras de convivência entre Estado, mercado e sociedade, a partir da lógica capitalista contemporânea.
Concomitantemente a esses mecanismos, observam-se ainda determinadas práticas de mercado com o fito do enfrentamento da multiplicidade de ofertas de produtos culturais à disposição do público tais como CDs com a trilha sonora da novela nacional e internacional entre outros subprodutos.
A fase da multiplicidade da oferta é perceptível desde o início da década de 1990, quando há mais opções para os telespectadores e crescente disputa por audiência. Porém, somente em 1995 se define essa fase da TV brasileira, a partir da obra de Valério Brittos, e é nesse panorama que se dá a reestruturação dos mercados televisivos contemporâneos, ávidos por alternativas para seu fortalecimento frente à concorrência.
Ocorre ainda a associação dos atores a práticas de merchandsing como Hospital São Luiz e o ator como personagem X, Houston Bike com os personagens Danilo e Sinval (Cauã Reymond e Kaiky Brito), e a C&A - rede de varejo de moda do Brasil com a personagem Melina (Mayana Moura).
“Cidadania, a gente vê por aqui!” - O que se observa na Rede Globo de Televisão é a autorreferência (a partir dos slogans adotados que surgem como palavras de ordem), como locus promotor de cidadania ao longo da programação. Mas não se pode esquecer é que, enquanto instituição privada, cujos interesses são, em sua essência, particulares, essa cidadania é tematizada na grade e imprime uma feição de prática capitalista, ou seja, emerge como configuração de administração do capital.
O capitalismo, como qualquer outro sistema, mesmo abarcando um rol de injustiças, às vezes, irreparável, não pode estar sujeito às críticas contínuas. Se assim for, inviabilizará qualquer tipo de adesão. Precisa oferecer, minimamente, vantagens que assegurem sua manutenção e, quiçá, sua melhoria.
* Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, professora do mestrado em Políticas Públicas e do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Piauí – UFPI, e líder do Grupo de Pesquisas COMUM/UFPI. Email: jacdourado@uol.com.br.
Fonte: Revista IHU Online Edição 342