terça-feira, 3 de agosto de 2010
NOMIC 30 anos: O que vamos comemorar?
Por Gislene Moreira Gómez*
Do aparente improvável contexto da Guerra Fria e das ditaduras emergiu o mais importante documento das Nações Unidas pela democratização da comunicação. Em 1980, Sean McBride apresentou na UNESCO o relatório que ainda hoje é a principal referência. No entanto, suas recomendações nunca foram implementadas, as políticas neoliberais aprofundaram o controle privado e visibilizaram a fragilidade democrática no tema mediático.
A novidade é que 30 anos depois, esse debate hibernado parece recuperar o fôlego graças às novas agendas de regulação mediática na América Latina. As novas leis gestadas da Argentina ao Equador parecem ter no Um Mundo, Muitas Vozes uma de suas principais justificativas. Mas quais as possibilidades desses novos marcos frente às Indústrias Culturais? Nesse aniversário, o relatório convida à reflexão. Aprender de suas debilidades pode ser a estratégia mais eficiente ao desafio da comunicação como direito.
Antecedentes
No final dos 60, a região se tornou uma das áreas prioritárias na disputa entre EUA e União Soviética. A Aliança para o Progresso mesclava investimentos econômicos e tecnológicos norte-americanos que impulsionaram os grandes conglomerados de mídia. Contrariando as pretensões estadunidenses, de Cuba ao Chile, o cenário foi permeado por lutas contestadoras que fragilizavam a consolidação do papel da ONU como garantidor da Paz Mundial.
O continente também se visibilizava pela emergência de um pensamento próprio no debate comunicacional, denunciando a dominação mediática. Vários acadêmicos regionais formaram parte do time de expertos que contribuíram ao novo paradigma.
A região emergia ainda como ator político. A Conferência de Ministros dos Países Não-Alinhados na Costa Rica foi outra chave que viabilizou a Nova Ordem Mundial da Informação (NOMIC) e o Pacto de São José, duas referências da idéia da comunicação como direito. Porém, é importante recordar que a maioria dos firmaram esses acordos progressistas representavam processos ditatoriais. Evidenciando um uso estratégico do tema, e não uma convicção ideológica.
Em 1974, a Conferência da UNESCO discutiu a regulação internacional dos meios de comunicação. A proposta foi apresentada pela União Soviética, que buscava blindar suas fronteiras dos produtos norte-americanos, e causou uma confrontação excessiva com os países ocidentais. Neste cenário, o Terceiro Mundo se aliou aos soviéticos.
Encurralado entre os titãs, o debate da comunicação rompeu os consensos da guerra fria e possibilitou criar a comissão de expertos, que em um período de três anos elaborou o polêmico McBride sobre uma intensa pressão.
O bombardeio
O resultado final foi um relatório bastante audacioso com indicação de políticas nacionais de comunicação, a necessidade de regulação do setor, e os primeiros sinais do paradigma da comunicação como direito. Explicitamente, se enfrentou com os interesses do capital privado e da hegemonia norte-americana, mas dentro dos marcos democráticos liberais de gestão internacional. As conseqüências ainda hoje são sentidas.
A Associação Internacional de Radiodifusão (AIR) e a Sociedade Interamericana de Prensa (SIP) iniciaram rapidamente uma contra ofensiva, apelando ao conhecido argumento da violação da Liberdade de Expressão, confundido com liberdade de empresa.
As mudanças no cenário geopolítico, com as guerrilhas controladas pelas ditaduras, eliminação dos governos opositores, e gradual diminuição da ameaça soviética, permitiu também a reafirmação dos Estados Unidos como ator decisivo e o recuo dos países Não-alinhados ao seu enfrentamento.
O processo culmina com as retiradas norte-americana e inglesa da Unesco e os avanços das políticas neoliberais. O informe McBride virou um tabu triste e amargo, e o avanço da concentração mediática privada não teve freios, instalando-se até mesmo no modelo europeu de televisão pública.
O que há de novo?
Hibernado por quase 30 anos, o debate da regulação mediática e das políticas pública da comunicação volta à agenda como fruto dos novos enfrentamentos na América Latina. Outra vez, a região se coloca na zona de vanguarda da discussão através de iniciativas de lei que retomam as premissas de controle estatal e de comunicação pública.
O resgate acontece em meio a uma crise neoliberal e a viradas democráticas que questionam, pela primeira vez em muito tempo, o modelo hegemônico. No entanto, esse cenário não segue os rumos da antiga polarização. O debate está em aberto e deixa brechas para a experimentação de novos formatos de políticas de comunicação e também para a emergência de novos atores, como a sociedade civil, historicamente excluída inclusive do McBride.
No entanto, todas as iniciativas de construção das novas políticas de comunicação estão no alvo das pressões dos grandes meios, que tentam renovar o argumento da liberdade de expressão. Mais uma vez, se ensaiam contra-ataques e a história ensina que essa é uma luta assimétrica.
É hora de aprender da fragilidade do modelo de democratização da comunicação no jogo de interesses políticos e econômicos que circulam o tema. Numa indústria cada vez mais submetida ao capital sem fronteiras, os avanços de políticas nacionais não serão suficientes para frear outros 30 anos de imposição hegemônica.
O chamado é à articulação de novos atores, capazes de acumular forças e gerar mecanismos de pressão frente ao cenário decisório internacional. Os embates apontam à necessidade de blocos estratégicos desde uma sociedade civil latino-americana. O aprendizado McBride parece indicar que só um pensamento crítico e renovado do direito à comunicação num contexto capitalista pode ajudar a construir esse novo modelo.
* Gislene Moreira Gómez, jornalista graduada pela UFBA, mestre em comunicação pela mesma universidade e doutoranda em ciência política pela Flacso-México; é membro do Grupo Cepos. Email: Gislene.moreira.@flacso.edu.mx
Fonte: Revista IHU Edição 337