quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A tecnologia espanca o conteúdo

Por Nelson Hoineff

A tecnologia está espancando o conteúdo na televisão aberta – e isso vem provocando um grande desconforto nas redes. Estão todas com dificuldades em definir suas prioridades para as plataformas com que já estão trabalhando.

A hegemonia da tecnologia sobre o conteúdo é considerado um fato mais ou menos normal – pelo menos todo mundo já se acostumou a isso –, mas com o surgimento das plataformas digitais essa diferença se avolumou bruscamente e bateu nos cofres das empresas.

Sabemos que quando uma dúvida chega aos cofres, ela deixa de ser uma questão filosófica e passa a ser um indicador econômico. É aí que as alternativas menos ortodoxas cessam de ser motivo de zombarias e se transformam no que as pessoas costumam chamar de "coisa séria".

Falhas no sistema

A conta da digitalização é o que se entende por coisa séria. Algo em torno de 10 bilhões de reais. Esperava-se que o pagamento dessa conta se desse através da boa utilização de algumas das principais propriedades da TV digital: HDTV, multiprogramação, mobilidade & portabilidade e 3D, para não falar das ferramentas interativas. Todas essas propriedades têm potencial para gerar conteúdos originais e inovadores – capazes, portanto, de se transformar em receita.

O varejo cumpriu sua parte, colocou no mercado televisores aptos a receber sinais em alta-definição (os full HD) a preços acessíveis. Mas as emissoras não moveram um músculo para melhorar o conteúdo – a menos que considerem que reforçar a maquiagem das atrizes e esconder os defeitos da cenografia represente um grande avanço conteudístico.

No tocante à multiprogramação, não houve mesmo o que fazer. O Ministério das Comunicações decidiu que só as outorgas públicas poderão subdividir seus canais em definição standard e isso vai ficar para os próceres do próximo governo.

Já com a entrada em operação do 3D – que chegou bem mais cedo do que as emissoras suspeitavam – o abismo entre a tecnologia disponível e o conteúdo para adequá-la se tornou maior ainda. Por um lado, não há consenso sobre as tecnologias aplicadas – a Globo, por exemplo, não considera exatamente 3D o que a RedeTV! vem fazendo, e ela mesma, a Globo, teve que cancelar as transmissões em 3D dos jogos da Copa do Mundo – que seriam feitas dentro de alguns cinemas – por reconhecer que o sistema ainda era muito falho.

Situações distintas

O que preocupa de fato a Globo – e outras redes que eventualmente caminhem no limite da sensatez – é que fala-se em 3D e vendem-se equipamentos em 3D antes que a mobilidade e a portabilidade tenham tido a chance de decolar. O usuário simplesmente não tomou conhecimento desta que é, no momento, a mais poderosa propriedade das plataformas digitais.

Não tomou conhecimento porque as emissoras não estavam preparadas para isso. Ao contrário do 3D ou do HDTV, que modificam a qualidade e a natureza das imagens, a mobilidade e a portabilidade modificam todo o modelo de negócios da televisão; criam novas e atraentes faixas para o seu consumo e estimulam a criação de conteúdos mais focados, necessariamente mais dinâmicos, em oposição ao engessamento e à acomodação da televisão que se pratica no país. Perto da mobilidade, o 3D é a cereja.

Em tese, a televisão móvel, portátil, vai buscar o espectador em qualquer lugar, exatamente o contrário do que acontecia até agora – quando o televisor, passivamente, o esperava chegar em casa, como uma dona de casa exemplar (que além das sandálias, lhe deixava as novelas quentinhas).

Executivos que são pagos para qualquer coisa, menos olhar para frente, continuam fazendo isso – sem se darem conta de que o mundo não é mais assim. Se as plataformas digitais permitem o recurso da mobilidade, então a televisão – não por altruísmo, mas por mera questão de sobrevivência – tem que ir onde o espectador estiver. Ele vai estar na condução, no trabalho, no almoço, em qualquer lugar – mas seja lá onde for parar, dificilmente vai se comportar como o desmiolado que põe os chinelos em casa para ver o que vai acontecer no capítulo da novela.

Se excetuarmos alguns programas humorístico que têm ousado testar os seus limites – Pânico e CQC são exemplos óbvios – a televisão brasileira está olhando para si mesma como se nada estivesse acontecendo ao seu redor. Ela não sabe o que fazer com o público adicional gerado pelas transmissões para receptores móveis, mas se não lhe oferecer o conteúdo que ele está buscando fora de casa vai perdê-lo para outras mídias. Reluta, com acerto, em mergulhar no 3D, porque sabe que as situações enfrentadas pela televisão e pelo cinema são muito diferentes. O cinema precisava de gimmicks para tirar o espectador de casa, levá-lo até as salas. A televisão precisa o contrário: fazer com que o usuário receba a televisão onde quer que ele se esconda.

Avanço tecnológico

O desafio do 3D, antes que a mobilidade seja resolvida, leva à loucura quem quer que esteja percebendo a quantidade de recursos que vai escorrer por rios que simplesmente não foram percorridos. E não o foram por falta de idéias originais para desenvolver uma TV móvel que atenda às necessidades do meio. Tem pouca gente pensando, e quem está pensando não está pensando bem.

Quem olha para frente vê também que a mobilidade é um imensa caixa de marimbondos. Numa estimativa pessimista, o que está em jogo são faixas de audiência de 20%, quando o que se disputa neste momento são décimos de pontos. Qualquer mexida mal resolvida pode, então, modificar radicalmente quadros de audiência estáveis há muito tempo. Ninguém que ganhe acima de dois salários mínimos quer meter a mão nesta cumbuca.

A televisão aberta brasileira está sofrendo, como poucas vezes sofreu antes, de falta de criatividade e inovação. O avanço das novas tecnologias está contribuindo para tornar esse quadro mais evidente. Está mostrando que o rei está nu. A televisão já é móvel, já é tridimensional, já é quase interativa. Seu conteúdo, no entanto, ainda está lamentando a chegada do vídeotape.


Fonte: Observatório da Imprensa