Por Tulio Muniz
A "Copa verde" anunciada pelo presidente Lula pode vir a ser uma rara oportunidade para a mídia articular questões urbanas e ambientais regionais num contexto nacional. O que se vê são abordagens locais que, embora importantes, não consideram as semelhanças dos diversos processos de devastação ambiental em diferentes ecossistemas.
Há em comum, ao longo dos séculos, a devastação do semi-árido, o cerrado, a Mata Atlântica, as zonas costeiras e a Amazônia. A Copa do Brasil, com jogos em cidades localizadas nessas zonas, pode ser um pretexto para se discutirem questões que estão para além dos aspectos urbanos e que por vezes passam ao largo dos discursos oficiais de preparação do evento.
Será uma exposição jamais vista do patrimônio natural brasileiro, um potencial mal explorado que mantém o país na rabeira do turismo mundial – e os organizadores da Copa sabem disso. Em maio último, o site http://www.copa2014.org.br, baseado em dados da Embratur, anunciava: "Entrada de turistas estrangeiros no Brasil cai 4,9% em 2009". Foram 4,8 milhões em 2009 contra mais de 5 milhões em 2008, mantendo os números brutos do Brasil acima da casa dos 40 países do mundo mais visitados por estrangeiros (os dados são da Organização Mundial de Turismo, órgão da ONU). A crise econômica mundial colaborou para a queda, mas os aspectos urbanísticos do país também. Pois enquanto assistimos às diversas mídias regionais promoverem características naturais ou urbanas de seus "umbigos", não há análises amplas e permanentes acerca da falta de uniformidade em padrões urbanísticos nos grandes centros.
Prefeita comprou briga com o estado
Para dizer como Darcy Ribeiro, também nossas cidades são "vários Brasis". O Norte e o Nordeste, ricos em paisagens naturais (praias, florestas e semi-árido) permanecem com um déficit de saneamento básico e limpeza urbana em relação ao Sul, e perdem também em estrutura de transporte coletivo (em Fortaleza, por exemplo, a implantação do metrô, de apenas duas linhas, se arrasta há dez anos).
Em geral, todas as capitais devem muito em informação, tanto aos próprios cidadãos (turistas ou moradores) quanto aos estrangeiros, pois se não é prática comum sinalizações na língua nacional, da mais prosaica parada de ônibus às praças públicas, o que dizer em outras línguas. Aliás, nesse quesito a mídia nacional também é restrita, pois, salvo engano, não há em nossos jornais seções permanentes em línguas estrangeiras, nem mesmo na "língua irmã" castelhana. Se em aspectos urbanísticos a abordagem alargada dos problemas é deficiente na mídia, também o é no que se refere à natureza.
Por exemplo, nos últimos meses a imprensa restringe-se ao regionalismo e à linguagem economicista para noticiar um problema comum entre Santa Catarina, Rio de Janeiro, Pernambuco e Ceará: a implantação e expansão de unidades da indústria naval. Dois novos estaleiros que atenderão à demanda de navios gaseiros e petroleiros da Petrobras "migraram" antes de serem implantados: o que seria em Santa Catarina, vai para o Rio de Janeiro e o que seria no Ceará, vai para Pernambuco.
No Sul, a inviabilização do estaleiro partiu do Instituto Chico Mendes, do Ministério do Meio Ambiente, e visa a proteger três unidades de conservação ambiental (Área de Proteção Ambiental do Anhatomirim, Reserva Biológica Marinha do Arvoredo e Estação Ecológica de Carijós), que seriam diretamente atingidas pelo estaleiro OSX (leia-se Eike Batista). Em Fortaleza, a prefeita Luiziane Lins (PT) comprou briga pesada com o governo do estado, com o poder econômico e mesmo com políticos de seu próprio partido até que demonstrou, com argumentos técnicos, a inviabilidade de um estaleiro na zona urbana da capital. A contenda durou 10 meses, dividiu opiniões de políticos e jornalistas e nos últimos dias os empresários optaram por levar o estaleiro para o complexo de Suape, em Pernambuco (aliás, aceitando área com 20 hectares a menos do que a pleiteada no Ceará, onde aterrariam 100 hectares de mar).
Armadilhas identitárias
Tanto a prefeita Luiziane Lins quanto o Instituto Chico Mendes correm risco de desgaste, mas tiveram atitude correta. Agora, enfrentam outra batalha, a de não serem criminalizados pela mídia e por "formadores de opinião" por terem se postado contra os empreendimentos. São muitos os argumentos para demonstrar o risco sanitário e ambiental. Mundo afora, a atividade de construção naval pesada é causa frequente de doenças graves entre trabalhadores e populações envolventes. Pelo menos desde o ano 2000 que se alerta para o risco de contaminação de trabalhadores em estaleiros por amianto, inclusive causando mortes (ver aqui).
Os empreendedores argumentam com o "risco zero" para seus investimentos, com aval da mídia, do estado e dos políticos que se aliam a esse capitalismo obsoleto. No caso do Ceará, o aval do poder público se deu sem planejamento ou amarras institucionais, enquanto que é suposto caber ao Estado a função de resguardar o interesse social e evitar risco ambiental. Convém mirar a História. Em 1998, Olívio Dutra (PT), ex-governador do Rio Grande do Sul, recusou a isenção de impostos para que a Ford lá implantasse uma unidade de montagem. A Ford foi para a Bahia, mas recentemente o estado gaúcho ganhou, na justiça, uma compensação financeira de R$ 130 milhões por a empresa ter mudado o local da sua fábrica descumprindo acordos anteriores com financiadores do empreendimento. Muitos jornalistas cearenses antes favoráveis ao estaleiro convenceram-se que o risco era de um desastre sócio-ambiental. Dos políticos favoráveis se esperava outra postura, alinhada com o contexto ambiental contemporâneo. Alguns são jovens, como o próprio governador Cid Gomes (PSB), têm tempo de não envelhecerem precocemente se não repetirem erros e aprenderem com eles, caso se permitam ao saudável exercício de autocrítica.
São muitos os casos, como os citados acima, que não são abordados como similares pela mídia nacional ou regional. Por exemplo: o que há em comum entre os desastres das enchentes em Alagoas e Pernambuco, em 2010, e a de Itajaí, em Santa Catarina, em 2008? A monocultura (da cana de açúcar, no Nordeste, e do pinus, no Sul), que devastou matas ciliares, as mesmas que a controversa reforma do Código Florestal quer diminuir. Eis o problema: enquanto que os brasileiros (e sua mídia) constroem um país sem pensar a unidade de seus problemas, o olhar estrangeiro projetado sobre nós não corresponde a essa imagem "esfacelada". Lá fora, o Brasil é visto como um único país, e não vários. Quando um morro despenca no Rio, uma queimada devasta o cerrado ou uma grande área é desmatada na Amazônia, a leitura que os estrangeiros fazem, ainda que afetados pelos equívocos típicos de generalizações, é de um único e problemático país. O provincianismo da mídia tem aspectos positivos quando acentua as diferenças sócio-econômicas regionais, mas por outro lado cria armadilhas identitárias que impedem a articulação de problemas com outros contextos dentro do próprio país (o crack, a homofobia, a violência doméstica – exemplos não faltam).
Talvez a Copa de 2014 comece desde agora a unir o país e a mídia em questões outras, e não só em torno do futebol.
Fonte: Observatório da Imprensa