Por Lilia Diniz
Na semana passada, o Jornal do Brasil anunciou mais um capítulo da sua lenta agonia. Após 119 anos de história, deixará de sair em papel. A partir de primeiro de setembro, manterá apenas a versão online. A notícia não chegou a ser uma surpresa. Há décadas, o jornal enfrenta uma grave crise financeira. Aquele que foi o jornal mais influente e copiado do Brasil entre as décadas de 1950 e 1970 atualmente tem uma tiragem de apenas 20 mil exemplares. O passivo acumulado é estimado em R$ 800 milhões, a maior parte em dívidas trabalhistas e fiscais.
Alberto Dines recebeu três jornalistas no estúdio do Rio de Janeiro: Ana Arruda Callado, Ricardo Noblat e Wálter de Mattos Jr. Escritora e professora universitária, Ana Arruda é doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Presidiu o Conselho Estadual de Cultura, foi vice-presidente da ABI e presidente do Conselho Administrativo. Noblat é jornalista há 43 anos, sendo 28 destes dedicados à cobertura política. Atualmente tem uma coluna semanal no jornal O Globo e mantém um blog na Internet que é um dos mais visitados no Brasil, o Blog do Noblat. Wálter de Mattos Jr. é diretor-presidente e criador do diário esportivo Lance!, o primeiro jornal nacional de esportes do país e, atualmente, o maior veículo do segmento esportivo na América Latina.
Antes do debate no estúdio, na coluna "A Mídia na Semana", Dines comentou a trágica morte do menino Wesley Gilbert Rodrigues de Andrade, atingido no peito por um tiro de fuzil dentro da escola durante uma operação da polícia militar no Rio de Janeiro (16/7). A escola de Wesley figurou em uma série de matérias publicada no mês passado pelo jornal O Globo sobre colégios em áreas de risco. "A série de reportagens ‘O x da questão’ pretendia fugir das estatísticas, dar nome e rosto às crianças que vivem na terra de ninguém. Como jornalismo foi perfeita. Como presságio foi tragicamente correto", avaliou.
Profissão romântica
Ainda antes do debate ao vivo, em editorial, Dines disse que a frieza com a qual a mídia tratou o caso do JB é o símbolo de uma transformação. "A imprensa abdicou das emoções porque aceitou transformar-se numa indústria tão transcendental quanto uma fábrica de biscoitos", censurou. Para Dines, escolhas políticas contribuíram para o declínio do jornal. "A amizade mais perniciosa foi com Delfim Netto, que estimulou o jornal a endividar-se pesadamente para financiar uma faraônica sede e os novos equipamentos. Este elefante branco atropelou o resto dos escrúpulos e entregou o jornal a um empresário que não lê jornais e detesta jornais, exceto jornais moribundos que arrenda a preço de banana", criticou.
A reportagem exibida pelo Observatório contou a história do jornal. É em meio à agitação política no país que deixava a monarquia para se tornar uma República, que Rodolfo Dantas funda o Jornal do Brasil. Defensor do antigo regime Liberal, o novo periódico é lançado em 1891. Entre os diretores do jornal nos primeiros anos constavam nomes como Joaquim Nabuco e Ruy Barbosa. Em 1905, adota uma linha editorial voltada para o noticiário do cotidiano da cidade. As dificuldades financeiras levam o JB a ocupar a primeira página só com anúncios classificados – e por esta razão ele ganha o apelido de "jornal das cozinheiras".
Em 1953, morre o Conde Pereira Carneiro e sua viúva, Maurina Dunshee de Abranches, assume a direção. Manoel Francisco do Nascimento Brito, genro e representante da condessa Pereira Carneiro, adquire novo equipamento gráfico e lança a idéia de reformulação do jornal. A partir de 1956, a forma de apresentar a notícia muda radicalmente. Saem os fios que separam as colunas de texto, diminui o espaço dos classificados e a fotografia passa a ser publicada na primeira página. O poeta Ferreira Gullar, que fez parte da equipe que reformou o jornal, contou que o Suplemento Dominical – ponto de partida das mudanças – era totalmente inovador. "Tinha uma paginação inteiramente revolucionária", relembrou.
Os anos de chumbo
Durante a ditadura militar, o Jornal do Brasil não vê no general Costa e Silva condições de impedir o endurecimento do Regime, logo comprovado com a decretação do AI-5, que mereceu total repúdio. A edição que anuncia o recrudescimento do regime, em dezembro de 1968, entra para a história da imprensa. Através de sutilezas imperceptíveis para os censores, consegue informar aos leitores que está sob severa vigilância. No início da década de 1970, JB e O Globo protagonizam uma vibrante disputa. Roberto Marinho passa a publicar O Globo também aos domingos e briga por espaço com o concorrente. Em represália, Nascimento Brito começa a sair às ruas às segundas-feiras. Logo depois, os classificados são o alvo da disputa. O JB saiu na frente mas, em 1976, O Globo derruba sua liderança no mercado de anúncios.
Os anos 1970 marcam o declínio do JB. Erros de gestão e falhas de planejamento estratégico levam a dificuldades financeiras incontornáveis. No final da década anterior, os proprietários do jornal decidem construir uma nova sede. Com a obra, a empresa endivida-se em dólar. O novo prédio é projetado para abrigar todas as marcas do grupo, incluindo o canal de televisão. "O jornal fez um empréstimo grande para terminar o prédio. Este empréstimo coincidiu exatamente com o pior momento da vida brasileira. Essa dívida passou a crescer porque o jornal, com a mudança, teve que fazer uma porção de outras despesas. E foi aí que a dívida ficou impagável porque a inflação não perdoa", explicou Wilson Figueiredo, que foi vice-presidente do JB.
Em 1973, o jornal muda-se para a nova sede. "A imponência e a dimensão daquele prédio correspondiam a um certo sentimento de grandeza inexplicado do dr. Nascimento Brito e, na verdade, aquilo não se tornou a sede do Jornal do Brasil, mas o mausoléu", disse Maurício Azêdo, ex-redator do JB e presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Wilson Figueiredo considera que naquele endereço o diário teve o seu momento de grandeza, esgotou suas possibilidades, não foi capaz de superar-se e "morreu".
Começo do fim
Nos anos 1980, o JB ainda conserva parte do vigor editorial do passado, mas as crescentes dívidas já afetam a publicação. No final da década de 1990, a empresa entra em colapso financeiro. Ex-colunista do jornal, Ancelmo Gois relembrou que este foi um período muito conturbado da economia nacional com inflação alta e diversos choques econômicos e cambiais. "Várias empresas familiares de grande porte também naufragaram naquele período", ponderou. Em 2001, o montante das dívidas gira em torno de R$ 700 milhões. Os acionistas do JB arrendam a marca para a Companhia Brasileira de Multimídia, controlada pela Docasnet, de Nelson Tanure, por cerca de R$70 milhões.
"Nessa última fase do Jornal do Brasil exercitaram naquele jornal o conceito de que informação é commodity e aí fizeram um jornal amesquinhado. Era feito dentro de um conceito onde você ia buscar informação dentro da internet. Essa informação era rala e os leitores estava acostumados a informação com densidade", avaliou Arnaldo César, ex-editor de Economia do JB. Em 2006, o diário adota o formato berliner. "O formato atual não é ruim, e até bom para um jornal novo. Mas não para um jornal que tem uma história gráfica, editorial e ética como o Jornal do Brasil. Virou um jornaleco", disse Reynaldo Jardim, um dos precursores da reforma do JB. "E feio. Não tinha nada a ver com aquele jornal que existia", completou Ferreira Gullar.
Ao final da reportagem, os entrevistados avaliaram as consequências para o mercado do Rio de Janeiro. "O leitor perde. É melhor uma cidade com muitos jornais do que com poucos jornais. Isso é melhor em qualquer circunstância, em qualquer lugar do mundo", advertiu Ancelmo Gois. "O Jornal do Brasil, ao sair do mercado de impressos e se concentrar no mercado eletrônico – e eu acho que o jornal vai fazer isso única e exclusivamente para a manutenção da marca e não para exercer um jornalismo, de fato, na internet... Esse é o buraco que o Jornal do Brasil deixou. E eu acho que existe hoje no mercado do Rio de Janeiro um espaço para uma publicação com informação qualificada", disse Arnaldo César.
Esvaziamento do Rio
O Observatório exibiu uma entrevista com Franklin Martins, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, que falou sobre o fim da edição impressa do JB na qualidade de jornalista. "Ele tinha as suas opiniões, muitas vezes eu não concordava com elas, mas era um jornal que não agredia o leitor querendo impor as suas opiniões. Um jornal que tratava o leitor com respeito e inteligência, e sempre dizendo a ele: ‘essa é informação que eu estou te dando, mas você pode ir além dela’", disse. Franklin Martins explicou que o Rio de Janeiro já teve uma imprensa plural e que o caso do JB é "apenas o exemplo mais dramático" do esvaziamento da mídia carioca.
"A indústria da comunicação se tornou uma indústria muito pesada, com custos muito altos", sublinhou. Por outro lado, o jornalista acredita que a digitalização e a internet abrem possibilidades para um "contra-fenômeno", uma vez que reduzem bruscamente os custos de produção de um jornal. "Dois terços dos custos de um jornal são dedicados a papel, circulação e administração correspondente a isso. Ou seja, o negócio central, o coração do negócio da imprensa, que é a redação, é responsável mais ou menos por um terço do jornal. Talvez os jornais atuais sobrevivam ainda com uma edição em papel ao lado de uma edição eletrônica, mas a tendência em longo prazo é a de se caminhar para um jornal eletrônico", disse.
A digitalização, ao baratear os custos de produção, abre possibilidades em médio prazo de surgimento de publicações eletrônicas "mais baratas que talvez não tenham que pertencer a grandes grupos". Este fenômeno está em curso em diversos países, não só no Brasil. "Talvez a gente possa voltar um pouquinho à época heróica do jornalismo, quando ele era mais plural, dava menos palpite, se preocupava mais com o leitor, em dar informação", avaliou.
Escola de jornalismo
No debate ao vivo, Ana Arruda Callado – a segunda repórter do Jornal do Brasil –lembrou que o jornal conhecido como "o jornal das cozinheiras", depois da reforma, transformou-se no "mais charmoso, importante e bem escrito do país". Ana chegou ao JB em 1958, quando ele passou a publicar fotografias na primeira página. "Era o jornal modelo deste país. Dines falou na abertura do programa em ‘profissão romântica’. Nós éramos românticos. Nós adorávamos o jornal como se fosse nosso", contou. Durante as viagens pelo JB, Ana era interpelada por repórteres de todo o país, ávidos por saber detalhes sobre os bastidores do jornal.
Ricardo Noblat, que trabalhou nas sucursais do JB no Recife e em Brasília, disse que o Jornal do Brasil era uma meta que a maioria dos jornalistas fora do eixo Rio-São Paulo aspirava. "Era a escola onde todos gostariam de trabalhar", disse. Noblat contou que nos tempos áureos o JB funcionava como um jornal, de fato, nacional. A sucursal de Recife, por exemplo, chegou a contar com seis repórteres. "O jornal procurava refletir tudo o que de importante acontecia no país. Então, não só tinha uma rede extensa de sucursais, como de correspondentes. E olha que eu estou falando em uma época em que a gente mandava matéria por telegrama ou malote", relembrou.
Para o empresário Wálter de Mattos Jr, o jornalismo em papel no Rio de Janeiro caminha para um tom monocórdico. "Você tem alguns jornais populares que cumprem um papel importante, mas nesse segmento do quality paper você ficou com um jornal. E isso limita bastante", analisou. Já em outras plataformas, como a internet, o padrão de competitividade é "extraordinariamente alto". "O Rio está muito mais pobre, mas não é de hoje. A gente está falando de um réquiem que começou a ser tocado há muito tempo", lamentou.
Fonte: Observatório da Imprensa