Por Andres Kalikoske*
A indústria televisiva atinge milhões de brasileiros todos os dias, sendo que muitos a utilizam como única fonte de informação. Seu discurso, inserido na lógica capitalista, pode gerar consequências irreparáveis.
O capitalismo é um sistema econômico paradigmático em constante mutação. Desde seu advento, diferentes desdobramentos de seus modelos têm sido praticados nos mais diversos regimes societários, sobretudo em sentido favorável às nações dominantes. Segue-se uma espécie de regência global do oligopólio, na qual um reduzido número de empresas, líderes em seu respectivo setor, exercem controle sobre a oferta de determinado produto ou serviço. Numa particular aproximação com a indústria da mídia, cuja lógica é análoga, têm-se a televisão como principal veículo de comunicação, e a TV Globo como maior difusora deste produto no território nacional. Sua penetração atinge milhões de brasileiros, sendo que grande parte deste coeficiente a utiliza como única fonte de informação.
Perifraseando Adorno em sua concepção sobre indústria cultural, pode-se afirmar que a TV Globo atinge hoje o mais alto nível produtivo de seu segmento, com muita competência empenhada na transformação de elementos nacionais em mercadoria. Seguindo uma dialética de homogeneização-diferenciação, a empresa reafirma sua imagem de socialmente responsável ao utilizar gramáticas televisuais esteticamente diferenciadas (como no caso das minisséries Hoje é Dia de Maria, A Pedra do Reino e Capitu, ou ainda, dos programas ecológicos ou educativos como o Telecurso). É importante considerar também que, desde os anos 70, a TV Globo modelou um padrão tecno-estético capaz de gerar unidade entre seus programas. O desenvolvimento desta operação mesclou fortes doses de paisagismo natural com elementos genuinamente brasileiros, num posicionamento de consolidação como empresa partidária ao nacionalismo. Na contemporaneidade, com o avanço das mídias digitais, esta estratégia se maximizou, como bem identificou Herscovici, a partir do conceito estrutura tecno-estética.
Esta rápida análise reforça a ideia de que o discurso inserido nos produtos da TV Globo está subordinado à dimensão estética e ideológica do capital, reforçada por uma lógica onde a midiatização de determinados temas caminha em curso com a sociedade. Em outras palavras, isso significa eliminar ideias, opiniões ou pensamentos que não estão em absoluto acordo com o admissível. Posicionamento preocupante e gerador de consequências irreparáveis, especialmente quando potencializado por narrativas que incorporam o cotidiano, acionando e vendendo modelos de vida que não condizem com a realidade.
Entre as múltiplas formas de violência (física, sexual e psicológica), a televisão atua no sentido de acionar o imaginário popular, uma vez que princípios éticos e morais são confrontados pelo visível. Na esfera acadêmica, esta questão tem sido discutida a partir de diversas perspectivas, dentre as quais podem ser referenciados os conceitos de banalidade do mal (Hannah Arendt), estado de exceção (Walter Benjamin), violência simbólica (Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron), violência estrutural (Philippe Bourgois, Nancy Scheper-Hughes, Paul Farmer), biopoder (Michel Foucault), doença social (Kleinman Arthur), zona cinza (Primo Levi), e cultura do terror (Michael Taussig). A contribuição de Bourdieu, um dos mais difundidos pensadores desta geração, eleva categorias marxistas ao instrumental de sua análise. Sob o ponto de vista da sociologia da educação, compreende o ambiente escolar como facilitador da construção de elementos hierárquicos, necessários para que indivíduos aceitem ideias sociais dominantes como representações naturais. Nesta perspectiva, a autoridade seria exercida pela instituição de ensino e seus agentes, então ditadores das relações hierárquico-pedagógicas. Numa abordagem macro das correlações de poder que entranham a psique, pode-se avançar a contribuição bourdieusiana, tencionando os discursos do principal produto da TV brasileira, a telenovela.
Neste segmento em específico, não equivocadamente, pode-se afirmar que a TV Globo tem sido um obstáculo para o desenvolvimento da diversidade no país. Para citar apenas alguns exemplos, a novela Páginas da Vida (2006), ao abordar a pandemia da AIDS, mostrou um personagem doente em estado terminal: magro, abatido e com manchas na pele. Este quadro foi suficiente para que o médico Diogo (Marcos Paulo) o diagnosticasse como soropositivo, sem sequer realizar o exame anti-HIV. Descuido que alimenta o preconceito e não condiz com a conjuntura atual da doença. A reação não tardou: gerou polêmica entre ativistas, críticas do Ministério da Saúde, da Sociedade Brasileira de Infectologia e de ONGs que amparam pessoas que vivem com HIV/AIDS. Outro caso ocorreu em Duas Caras (2008), novela com alto grau de carga ideológica que questionou pejorativamente o trabalhador autônomo Benoliel (Armando Babaioff), pelo fato de não ter sua carteira de trabalho assinada. Ainda que o emprego informal seja sinônimo de barreiras ao crescimento da economia e carência de assistencialismo ao trabalhador, mais de 52% dos brasileiros, desfavoravelmente ignorados pela novela, encontram-se nesta condição. Por último, o caso mais recente aconteceu em Viver a Vida, onde se tentou incumbir uma menina de oito anos ao papel de vilã. Para que os prejuízos fossem diminuídos – uma vez que a personagem Rafaela (Klara Castanho) já colecionava uma série de pequenas maldades –, o Ministério Público enviou notificação à TV Globo, exigindo rumos mais brandos para a menina. A intenção era evitar manifestações de hostilidade por parte do público, já que se entende que uma criança desta idade não comporta discernimento e formação psicossocial para separar ficção da realidade.
* Doutorando em Ciências da Comunicação na Unisinos e coordenador do NAT (Núcleo de Análise da Teledramaturgia).
Fonte: Revista IHU Online