A realização da primeira Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), em dezembro de 2009, simboliza um marco no debate sobre democratização do fenômeno comunicacional no país. Não que seja um espaço capaz de, por si próprio, resolver as distorções estruturais dos mercados de comunicação do Brasil, já que se trata de um lugar consultivo – que não irá produzir diretamente um novo marco regulatório, portanto – e possui as marcas da hegemonia de seu tempo. Mas, sem dúvida, é um lócus inédito na história nacional, onde um campo com tamanha dimensão pública como o das comunicações tem sido tratado basicamente como negócio privado.
Com a convocação da Conferência pelo governo Lula, ocorre uma quebra de paradigma nas ações do Estado no que se refere à regulamentação da mídia do país, visto que tem sido comum uma resistência a modificações na essência do aparato legal do setor. Tal posicionamento fica explícito com a permanência dos aspectos de radiodifusão do anacrônico Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), a rejeição de projetos que poderiam representar algum avanço, como a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) e o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), e a inoperância atual do Conselho de Comunicação Social (CCS) do Congresso Nacional.
Trata-se, então, de uma oportunidade que precisa ser assumida pela sociedade, até para a proposta não ficar entregue exclusivamente aos agentes econômicos, que sempre tiveram primazia nesse processo e dispõem de uma sólida rede de relações com autoridades governamentais, as quais, grande parte das vezes, também são detentoras de veículos de comunicação.
Conformar o mercado a partir de interesses
A fim de que os compromissos populares sejam levados em conta, é indispensável uma ampla discussão, preocupada em pautar diretrizes legais que definam a melhor maneira de democratizar o mega-setor comunicacional do país, dependendo assim, para sua efetividade, de organização e mobilização social, onde várias frentes de esforços são necessárias. A Universidade pode e deve cumprir uma missão importante, a de contribuir com elementos de análise e multiplicar o debate.
Com certeza, o processo de digitalização da televisão colocou na pauta da sociedade civil organizada as problemáticas da comunicação de forma inédita. Foi com o novo advento tecnológico e, principalmente, a perda das lutas da sociedade civil pela escolha do padrão tecnológico a ser utilizado para a TV digital, que os movimentos sociais acentuaram a necessidade de realizar um debate nacional, almejando modificações no marco legal da comunicação no país. Decorrente da digitalização, o conceito de televisão transforma-se devido à sua capacidade de oferecer diversos serviços e, ao mesmo tempo, ser disponibilizada através de outras plataformas midiáticas.
Assim, por pressão das entidades da sociedade civil e concordância dos próprios radiodifusores (amedrontados pelas operadoras de telecomunicações), a Conferência Nacional de Comunicação foi, enfim, convocada, mesmo que a partir de um comportamento ambíguo do governo federal. A obviedade que é a essencialidade de debater a comunicação no cenário atual foi finalmente reconhecida.
Diante dessas prerrogativas, é necessário que se configure um ambiente amplo de mobilização e debate na sociedade em geral e, para isso, deve-se buscar, entre outras ações, que a Confecom seja pautada pelos grandes veículos nacionais, abrindo espaço para a diversidade de visões acerca do papel e do funcionamento da mídia. Midiatizar a própria mídia é uma questão cara às empresas de comunicação, que, normalmente, preferem discutir os temas cruciais desta esfera internamente, nos gabinetes do Legislativo e com o Executivo, para poder conformar o mercado a partir de seus interesses, fazendo da legislação algo favorável a si.
Participação social
Para que se estabeleça um cenário mais democrático na comunicação, desde já é indispensável a articulação dos sujeitos sociais, para destacar temáticas importantes. É primordial nesse processo que a população esteja envolvida nas mobilizações estaduais e municipais, em um debate democrático e participativo, com a presença do Executivo, Legislativo, sociedade civil organizada e empresários. Estes devem tratar, em conjunto, de diretrizes para comunicação e políticas públicas visando à democratização da informação, de forma que a iniciativa da Conferência seja incorporada como compromisso dos poderes da República, especialmente do governo federal, com todos seus órgãos relacionados, bem como o Congresso Nacional, o Judiciário e o Ministério Público.
Para olhares mais atentos, duas prioridades já colaboram com a discussão: (1) liberar efetivamente recursos para o planejamento e o desenvolvimento da Confecom, pois não adianta formatar o evento sem recursos suficientes para sua realização da melhor forma; (2) gerar conseqüências objetivas no plano material na área da comunicação comunitária ou alternativa, enfaticamente propondo uma legislação que permita seu funcionamento de modo mais amplo, com mais concessões, processos mais ágeis e modelo de financiamento assegurado.
Estes recursos devem ser provenientes do próprio Executivo, que investe pesado em publicidade e, com suas verbas, deve também sustentar a mídia comunitária. Iniciativas que sem dúvida ajudariam no estabelecimento de uma verdadeira complementaridade dos sistemas privado e público (este estatal e não-estatal).
Nesse sentido – como um pólo de imensa responsabilidade no debate a ser realizado na Conferência –, avalia-se a sociedade civil como ambiente de disputa, com forte capacidade de promoção da cidadania, onde sua organização, em torno de interesses públicos, objetiva exercer influências sobre os processos político-administrativos e econômicos. Por fim, é ressaltado que a Conferência Nacional de Comunicação deve significar uma inflexão no histórico de baixa abertura do Estado brasileiro à participação social na elaboração, acompanhamento e avaliação das políticas públicas para o setor, mesmo que ainda num nível muito aquém do ideal. Para que isso se materialize, é indispensável a abertura no processo de preparação da Conferência, com debate ampliado, o que não tem se verificado plenamente, além das ações dos próprios movimentos sociais.
*Respectivamente, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos; e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Cepos e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade da Unisinos.
Fonte: Observatório da Imprensa