O dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, que celebra a morte de Zumbi dos Palmares em 1695 como símbolo de resistência à escravidão, é tradicionalmente marcado por marchas e protestos realizados pelo movimento negro. Este momento, utilizado para dar visibilidade ao debate sobre a igualdade racial no Brasil, é válido também para uma reflexão sobre como esta questão é retratada nos meios de comunicação, das notícias às novelas, e qual é a influência que estes conteúdos geram no imaginário popular em nosso país.
Um dos exemplos mais gritantes é a afirmação de estereótipos existente na teledramaturgia brasileira. Resistem na TV as velhas situações de inferioridade impostas aos negros e negras: a doméstica, a mulata sambista, o malandro delinqüente. Mais recentemente, o político corrupto da novela “A Favorita” da Rede Globo surgiu para “comprovar” a doutrina da emissora de que a ascensão social pela iniciativa individual é possível, mas que mau-caratismo não tem cor, mesmo que um só exemplo baste.
É, de qualquer maneira, sintomático que os rostos vistos nos telejornais e programas de auditório sejam quase sempre brancos. “O dado é que existe uma invisibilidade do negro nos meios de comunicação”, afirma Márcio Alexandre Gualberto, militante do Coletivo de Entidades Negras do Rio de Janeiro. A resposta das emissoras – que operam em regime de concessão pública, nunca é demais lembrar – à demanda dos negros e negras, quase metade da população do país, refere-se a casos de integrantes deste segmento em posição de destaque, como os jornalistas Glória Maria e Heraldo Pereira, trajetórias que podem ser consideradas como exceções que servem apenas de confirmação à regra.
Segregação simbólica
Para Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e membro do Núcleo de Pesquisas e Estudos Interdisciplinares sobre o Negro, há no país uma “segregação simbólica”, ou seja, tolera-se a presença do negro em atividades lúdicas como esporte, dança e música como uma forma de compensação por sua ausência em outros espaços. “O resultado é justamente a criação de estereótipos”, diz o docente.
“Quem entrega a pizza na propaganda é sempre um negro. Queremos que todos sejam tratados iguais”, afirma Gláucia Matos, militante da Fala Preta! - Organização de Mulheres Negras. Segundo ela, o conteúdo dos personagens negros tem uma tendência à desvalorização, sobretudo no caso das mulheres. “Nas crônicas policiais, o branco é sempre retratado como classe média, enquanto o negro é visto como marginal”, concorda Márcio Gualberto. “Além disso, na TV, quando a vitima é negra, sua reação é sempre pela vitimização ou pela superação, mas nunca a denúncia”, acrescenta Dennis de Oliveira.
Esta segregação tem tamanho poder que atinge a imagem que os negros têm de si próprios. Em 1932, Castro Barbosa cantava a marchinha “O teu cabelo não nega”, composição de Lamartine Babo até hoje executada nos blocos carnavalescos. “Mas como a cor não pega, mulata, mulata eu quero teu amor” é a mensagem passada pela música. Desde então, as piadas pejorativas relativas ao cabelo crespo típico da raça negra não cessaram. Gualberto conta que é comum que os negros passem em algum momento pela “crise do cabelo”.
Isso acontece, diz ele, porque a idéia de belo reproduzida pela mídia é justamente o padrão europeu. “É como o negro que fica rico e se casa com uma loira. Esta é a lógica do vencedor imposta pelos meios de comunicação”. Gláucia Matos conta que o movimento negro inclusive já processou a marca de palhas de aço Assolan por associar seu produto ao cabelo crespo de maneira pejorativa.
Preconceito velado
No último dia 2 de novembro, o inglês Lewis Hamilton não ganhou a etapa de São Paulo da Fórmula 1, mas levou o título do campeonato vencendo justamente um brasileiro. Primeiro negro a conquistar a principal categoria do automobilismo mundial, Hamilton e familiares sofreram um racismo que não acreditavam encontrar por aqui. As manifestações foram exaustivamente reproduzidas pela imprensa européia, mas no Brasil a repercussão foi quase nula, revelando a omissão da mídia nativa em denunciar o preconceito de seus cidadãos.
Para Márcio Gualberto, para além da presença física na teledramaturgia ou na publicidade, existe nos meios de comunicação em geral, sobretudo no jornalismo, “incapacidade, indiferença e má vontade” para lidar com a questão do preconceito racial. Gláucia Matos acredita que este cenário se refere ao papel da mídia em manter o preconceito. “Existem inúmeros casos de racismo nos tribunais. Os jornais também não dizem que a maioria dos jovens assassinados no país são negros”, afirma.
Admissão de culpa
O sociólogo brasileiro Florestan Fernandes dizia que a característica mais marcante do racista brasileiro é a de não se considerar racista. A melhor tradução prática dessa afirmação surge em “Não Somos Racistas”, livro de Ali Kamel, diretor-executivo de jornalismo da Rede Globo. “Ao mesmo tempo em que admite que existem diferenças, diz que é preciso ignorá-las para não criar uma divisão no país. É algo paranóico”, comenta Gualberto.Na avaliação de Dennis de Oliveira, a mídia insiste que o racismo no Brasil não tem um caráter sistêmico, abordando a questão sempre pela ótica individual. “A ação da mídia é sempre no sentido de minorar a questão, tirando-lhe a seriedade para que não entre na agenda [pública].”
O professor aponta que a única forma de superação do preconceito nos meios de comunicação seria o movimento negro se organizar para construir mídias alternativas. Gláucia Matos afirma que existem conquistas por conta da atuação do movimento, que tem monitorado e denunciado com maior rigor. “Mas no que depender da mídia”, diz ela, “ainda falta muito.”
Por Henrique Costa, do Observatório do Direito à Comunicação.
Fonte: Observatório do Direito à Comunicação