Por Valério Cruz Brittos e João Martins Ladeira
Após quatro anos de discussões da matéria, o atual Projeto de Lei 116/2010 (antigo PL 19) foi finalmente votado no Senado, na metade de agosto deste 2011. Decerto, ainda depende da sanção da presidente, podendo ser vetado total ou parcialmente, neste caso podendo os dispositivos eventualmente derrubados ser novamente habilitados pelo Legislativo. Porém, o mais importante é que a decisão acaba com a assimetria regulatória na televisão paga, promete mais competição e atualiza (um pouco) a legislação do setor.
O PL 116 vale quanto pesa, e sua carga em nada é desprezível. O texto possui dois objetivos imbricados. Um se refere à regulamentação do setor de distribuição de TV por assinatura. O outro, ao incentivo à criação de conteúdo, também no plano da televisão paga, com obrigações sobre cotas de programação nacional e presença obrigatória de produções independentes. Boa parte da cobertura midiática sobre a reta final de sua aprovação referiu-se ao segundo tópico, dando a impressão de ser este o tema central.
Faz sentido. Afinal, todas as emendas relativas a outros tópicos foram barradas no plenário. A exceção envolvia exatamente o sempre polêmico tema da programação, de difícil abordagem, que remete à TV fechada ou aberta. Derrubada por nove votos, sua real finalidade era empurrar o texto de volta à Câmara, ampliando, com um resultado desfavorável, a demora de um tema estratégico à atual gestão. Para o futuro, as ameaças versam sobre uma possível Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo.
A proliferação dos combos
A postura, defendida por PSDB e DEM, remontava a discussões travadas já na Câmara e retomadas no Senado. Todavia, o tópico era estritamente político e refletia a forma como aliados e oposição utilizaram o projeto, seguindo a tradição legislativa brasileira. A proposta, até 2010, tramitara por comissões controladas pelo segundo grupo. A partir de 2011, passou para PT e PMDB, tornando-se valioso. Premido por medidas provisórias sobre os aeroportos na Copa, seria adiado novamente em junho, sem novidades relevantes.
De fato, o ponto central do PL 116 refere-se à chance das operadoras de telecomunicações entrarem no mercado de audiovisual, tema previsto há tempos. Num mesmo impulso, o diploma legal derruba limites para a ação do capital estrangeiro, intensificando a inserção do Brasil num sistema global de comunicação, em posição, todavia, ainda difícil de definir. O formato pelo qual tais mudanças ocorrem merece observação. Agora, cabo, satélite e microondas podem ter capital estrangeiro (e presença de operadoras de telefonia).
O cenário de fundo caracteriza-se pela convergência de negócios entre corporações de conteúdo e negócios de telecomunicações. Trata-se de processo iniciado, no Brasil, durante a segunda metade da década de 2000. Seus pontos passados são marcantes: a compra da WayTV pela Oi, a venda do serviço de MMDS da TVA para a Telefonica e a associação entre Globo e Telmex. Os desdobramentos destes fatos mostram-se, por sua vez, centrais. Aguarda-se a proliferação dos denominado combos de televisão paga, telefone e banda larga.
Infra-estrutura da net
Os negócios do primeiro decênio deste século, sintetizados em concentração e internacionalização, tornaram clara a transformação do mercado de TV por assinatura numa operação complexa, com dois setores em inter-relação. Parecia imperativo definir como ambos poderiam operar. A solução de 2011 produz, enfim, outro marco legal, através de nova fórmula. Aqui, através da distinção entre infra-estrutura e conteúdo, eliminam-se as restrições impostas pela Lei do Cabo de 1995, propondo-se regras de propriedade distintas para ambos.
Em seu antigo formato, a norma restringia a participação das teles apenas para um caso altamente improvável: sua atuação ficava condicionada à ausência de outros interessados, cenário praticamente impossível de ocorrer. A nova solução é criativa. Agora, apenas o controle sobre conteúdo permanece restrito, a despeito de se abrir o mercado. A futura lei oficializa, a seu modo, uma divisão de trabalho já em atividade entre produção e distribuição, cada um com seus próprios regramentos, dimensões de capital e especificidades.
Por um lado, permite-se às teles operarem na distribuição de sinal. De outro, restringe-se a possibilidade de produzirem ou programarem conteúdo, reservando-a às corporações de audiovisual. Também foram definidas restrições à propriedade. Não se permite às teles a aquisição de produtoras de conteúdo: apenas 30% de suas ações podem estar em mãos de corporações como Oi ou Telefonica. Trata-se de uma regra que, ao fim, visa à proteção das empresas de radiodifusão, cujos negócios são cerca de 10 vezes menores do que o das teles.
A segunda obrigação parece quase formal: as produtoras poderiam possuir no máximo 50% de corporações telecomunicações. Vê-se o tamanho de ambos os negócios e percebe-se a impossibilidade de tal ocorrer. O centro do texto reside em regular a participação destes novos players nos negócios de TV paga. Decerto, diversas operações vão mudar de mãos: o caso paradigmático é a Net, cuja infra-estrutura, decerto, passará em breve ao controle da Telmex. Alguns arranjos já processados empresarialmente serão agora regularizados.
Questões de conteúdo
Todos estes problemas indicam um equilíbrio provisório entre interesses conflitantes. Corporações de infra-estrutura procuram diversificar suas atividades, decerto. Telefonia fixa, há tempos transformada emcommodity, cederá lugar a serviços capazes de conjugar internet e televisão ou, em outros casos, comunicações móveis. Ao mesmo tempo, companhias de mídia parecem especializar-se numa única competência central. O convívio de ambas demonstra a relevância de redes de empresas conectadas para projetos de negócios pontuais.
Por enquanto, ambas as constelações de interesse parecem ter sido satisfeitas. Nichos específicos de atuação foram definidos e poderão, num futuro imediato, continuar sua trajetória. Os rumos de um mercado em transformação são, todavia, difíceis de definir ex ante. Cada vez mais, no setor de comunicação, convergem atividades produtivas das mais variadas, ao mesmo tempo em que surgem novas tecnologias. Sua formação definitiva é, de fato, problema imperativo de observação futura. O PL 116 vai ainda ter de mostrar sua tonelagem.
O projeto foi debatido e votado em meio a constantes polêmicas, não encerradas. Além da proteção do conteúdo nacional, saudável para incentivo à indústria de conteúdos nacional, mas condenada pelos que defendem a autorregulação pelo mercado, há o tópico do papel da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Pelo novo projeto, a Ancine terá agregado o papel de fiscalizar questões de conteúdo. Trata-se de uma medida positiva, pelo menos enquanto o Brasil não tem uma Agência Nacional de Comunicações (Anacom).
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[Valério Cruz Brittos e João Martins Ladeira são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos e bolsista Capes de pós-doutorado do mesmo programa]
Fonte: Observatório da Imprensa