Por Sylvio Micelli
A mídia – sempre ela – mais uma vez está em palpos de aranha diante da cobertura de dois crimes passionais ou que ao menos imaginamos que sejam passionais. E a visão machista acaba por permear o noticiário. Eliza Samudio e Mércia Nakashima pagaram com a vida por crimes que não se justificam. Se é que algum crime, ainda mais de morte, pode ser justificado. Mais do que pagar com a vida, elas pagam com a reputação pelo simples fato de serem mulheres.
Vamos caso a caso.
Eliza Samudio foi, no início do caso, totalmente desqualificada pela mídia. Primeiro pela "grife" de amante do goleiro Bruno Fernandes das Dores de Souza, bom jogador do Flamengo, um dos clubes mais importantes do país. O termo amante, ainda que hipocritamente acreditemos viver numa sociedade aberta, é um mero eufemismo para vagabunda. Depois descobriram que ela teria feito filmes pornográficos e que o goleiro a teria conhecido numa "orgia". Ou seja: sob a ótica de parte da mídia, o que se entregava para a sociedade é que ela era uma prostituta, uma "maria chuteira" qualquer e que sua morte aconteceu porque ela "procurou". Alguns dias atrás o noticiário era bem esse. A partir do momento que o crime foi sendo desvendado, principalmente pelos requintes de crueldade, pela quantidade de pessoas envolvidas e pela sua quase clara premeditação, Elisa passou a figurar como vítima.
Longe de mim entrar no mérito do que ocorreu, até porque odeio mundo-cão e esta cobertura que boa parte da imprensa faz é nojenta. Com a esfarrapada desculpa de "esclarecer os fatos", reviram-se os ossos de uma sociedade apodrecida para que seja dado a ela mais sangue e, se possível, muitas cabeças na bandeja para o orgasmo das "cleópatras" de plantão.
Sobrou um bebê na história
Parece-me que tanto ela quanto Bruno vieram de famílias problemáticas. Ela tentou o seu lugar ao sol. Ele conquistou o seu lugar ao sol e, possivelmente, jogou tudo para o alto cercado por péssimas companhias. E aqui ressalte-se que os clubes de futebol no Brasil "usam" os jogadores, mas não lhes dão nenhum suporte psicológico diante da grana fácil e dos pseudo-amigos que aparecem. A ambos, enfim, faltou o forte esteio de família, coisa que a sociedade já não sabe muito bem o que é. Ainda que esta moça não tivesse um comportamento adequado aos padrões que se acreditam corretos, não cabe nem a mim nem a ninguém julgá-la e como já afirmei, nada justifica sua morte.
O fato de Bruno ter vindo de camadas pobres da população também não justifica o crime. Trata-se de mais um preconceito tosco. Já tivemos pai de classe média alta jogando a filha pela janela, filha de classe alta mandando matar os pais e até jornalista de grande veículo matando a namorada.
Sobrou um bebê na história, mas poucos dão a devida importância. Em breve, sua guarda será "leiloada" na Justiça e padeço em imaginar quão sofrida será esta criança.
Cobertura rançosa
Mércia Nakashima é um caso um pouco diferente. Ela era uma "moça de família" conforme imagina a tal da opinião pública, essa massa amorfa que vai para lá ou para cá, de acordo com os diversos interesses. Vem de uma família, em tese, bem estruturada, era advogada, ou seja, nada poderia ter acontecido com ela. Exceto pelo fato de seu ex-namorado, Mizael Bispo de Souza, não ter se conformado com o fim do relacionamento e, possivelmente, até pelo fato de ser ex-policial e ter fácil acesso a uma arma, ter resolvido matá-la.
Ainda assim, o noticiário é machista ma non tropo. Ouvi outro dia numa rádio que Mizael acreditava estar sendo traído e que "precisava limpar sua honra". Leia-se, subliminarmente, que ela é culpada e que merecia morrer. Aqui volto à mesma retórica. Ainda que ela tivesse traído o namorado, nada justifica sua morte.
A cobertura da imprensa já vem rançosa. Os fatos acontecem e deveriam ser analisados dentro do contexto do fato em si, sem outras adjetivações. Passou da hora de a mídia rever seus conceitos. Os crimes ainda renderão muitas páginas impressas e eletrônicas. Outras coisas medonhas acontecerão. E depois tudo será esquecido quando os holofotes forem desligados.
Fonte: Observatório da Imprensa