terça-feira, 23 de março de 2010

Mídia e política: as lições das eleições gerais moçambicanas de 2009

Por João Miguel*

As últimas eleições gerais em Moçambique mostraram quão cresce, cada vez mais, a importância da mediação midiatizada, encarando-se a mídia como uma arena privilegiada do jogo político. Quem prestou atenção nos jornais, rádios, TVs, Internet e até celular percebeu as transformações de percepção, não apenas dos políticos (...) mas também de um grande número dos habitantes da polis, que tem acesso a esses meios. Leia o artigo de João Miguel.

As últimas eleições gerais em Moçambique mostraram quão cresce, cada vez mais, a importância da mediação midiatizada, encarando-se a mídia como uma arena privilegiada do jogo político. Quem prestou atenção nos jornais, rádios, TVs, Internet e até celular percebeu as transformações de percepção, não apenas dos políticos, ou seja, atores políticos, mas também de um grande número dos habitantes da polis, que tem acesso a esses meios.


A cada eleição que se realiza no país, fica mais visível que a política tende a tornar-se midiática, entretanto, isso tampouco significa dizer que os espaços políticos tradicionais tenham pouca relevância. Aliás, é justamente nesta arena que fica evidenciada a pujança, em termos de recursos, diferenciando o partido no poder e dos restantes.


Mesmo não tendo dados sobre os gastos dos partidos políticos e das instituições de gestão do processo eleitoral, é possível prever que muito se investiu neste quesito. Existe uma compreensão de que a exposição, a visibilidade, o agendamento por parte dos meios massivos pode ser uma estratégia eficaz para granjear mentes e corações. Entretanto, sabe-se também que o desconhecimento da gramática, da lógica, dos procedimentos da mídia pode decretar a morte de candidatos, de partidos políticos, e, da mesma forma, podem imputar a opinião desfavorável dos cidadãos.


As eleições gerais e das assembleias provinciais de 2009 mostraram algumas nuances que merecem uma reflexão. Trata-se da forma como os consumidores dos produtos midiáticos se posicionaram em relação às estratégias propagandísticas, moldados pelos departamentos de comunicação e marketing para o consumo público.


Alguns episódios precisam ser lembrados. 1) A Comissão Nacional das Eleições (CNE) chumbou parcial ou totalmente listas de candidatos, alegando não terem reunido todas as condições exigidas. Isso fez com que alguns partidos não concorressem em certos círculos eleitorais, e alguns pretendentes à presidência vissem seus intentos augurados. O fato foi polêmico e levantou muito debate no espaço público. Até mesmo o corpo diplomático, cujos países são os financiadores do orçamento do Estado, entrou no debate exigindo explicação dos motivos da exclusão. Ao se dirigir à CNE, estes (o corpo diplomático) ficaram surpreendidos quando o presidente daquele órgão chamou a mídia, num encontro que, em princípio, poderia ter sido a portas fechadas. Havia uma intenção da CNE de influenciar a opinião pública, alertando-a da possível ingerência nos assuntos internos.


2) Os debates da nação tiveram uma dimensão diferenciada. Debate da nação é um programa veiculado pela STV, canal televisivo pertencente à Sociedade Independente de Comunicação (SOICO). Nesse espaço, várias temáticas de interesse do país são discutidas, e conta com um painel, geralmente composto por personalidades reconhecidas nos assuntos a serem debatidos e uma plateia que mescla diversas sensibilidades da sociedade moçambicana. Durante o período eleitoral em análise, os assuntos escolhidos estavam relacionados com o momento vivenciado. Como se pode prever, as paixões ficaram mais evidentes do que a razoabilidade do tratamento das questões. Os principais partidos da cena política, Frelimo, Renamo e MDM procuraram aproveitar esse ensejo para conquistar eleitores, através de uma autêntica encenação televisiva, descompromissado com o diálogo franco de políticas eficazes para a resolução de problemas que assolam o país.


3) Independência editorial: uma conversa para boi dormir. Outro aspecto que ficou visível e salientemente descaracterizado é a questão da independência editorial, amiúde apregoada nos meandros jornalísticos. Até mesmo o senso comum, ou seja, as pessoas que, no seu cotidiano, não prestam atenção para estes assuntos, puderam perceber que grande parte dos meios informativos se rende às artimanhas do poder. Alguns setores da mídia aproveitaram o ensejo para ganhar dinheiro que, por essas alturas, andavam à solta. Assim, nesse emaranhado de interesses, poderia se observar, por um lado, o tradicional jornalismo chapa branca, mais centrado na exaltação dos feitos dos atores da ala governistas; e, por outro lado, “o jornalismo independente” de empresas jornalísticas desvinculadas do poder político, mas centradas no ganho econômico, com recurso, por vezes, ao sensacionalismo.


O cenário vivenciado antes, durante e depois das eleições gerais de 2009 forneceu claras evidências de que a relação tricotômica mídia, política e sociedade está passando por um momento de reconfiguração e reestruturação, uma dinâmica incrementada pela crescente convivência com a mídia e os mecanismos subjacentes à sua práxis. Essa constatação permite antever que, no futuro, vai se acirrar, ainda mais, a disputa pelo protagonismo no espaço público midiático. Igualmente, vários segmentos sociais, paulatinamente, estão começando a separar o joio do trigo, a propaganda do interesse público.

*Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS); Professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane (ECA/UEM), de Maputo, Moçambique, e na Escola Superior de Jornalismo (ESJ)

Fonte: Revista IHU