Por Valério Cruz Brittos*
A televisão aberta brasileira completa 60 anos neste ano de 2010, sendo duplamente desafiada. Politicamente, torna-se, a cada dia, mais insustentável que um meio com tamanha consequência na vida dos brasileiros siga fornecendo pautas, orientações e mesmo construções da realidade unicamente a partir de interesses econômicos. Economicamente, está em crise mundial o modelo tradicional de TV, sustentado na publicidade, com um número limitado de canais, baixíssimo nível de interatividade, transmissão de uma única programação por emissora e grade com horários estabelecidos pela operadora.
Começando pela questão política, a contradição televisiva é gravíssima: se a influência da televisão é enorme, sendo a principal fonte de referência da maioria da população brasileira (e em grande parte das vezes de modo exclusivo, já que o índice de leitura é muito baixo no país), são privatizados os atos de midiatização, ou seja, de tornar públicos acontecimentos, reivindicações, posições, identidades e todas as manifestações. Em outras palavras: o negócio (a venda de publicidade e seu faturamento) é privado, do dono da empresa, mas a definição da agenda, do que tornar conhecido pela sociedade, logicamente não poderia ser.
O paradoxo não é novo. Desde sua implantação no Brasil, o quadro televisivo nacional estabeleceu-se como um mercado conformado por poucas obrigações impostas aos seus operadores, agentes privados que recebem uma concessão do Estado. Sendo uma concessão, deveria cumprir uma série de compromissos para desenvolver tal atividade, que, ao ser delegada pelo ente estatal à iniciativa privada, não perde seu caráter público, por não deixar de interferir (independentemente da valoração) na vida das pessoas, na sua forma de compreender o mundo e de reunir informações básicas para decidir e movimentar-se.
A diferença, agora, é que a sociedade brasileira está mais atenta ao problema da comunicação. Nas últimas duas décadas, a sociedade civil tem se mobilizado em prol da democratização comunicacional, não obstante o empecilho maior para publicizar tal luta: a resistência dos conglomerados de mídia, que temem qualquer regulamentação que venha a dar alguma dimensão pública ao setor. Para isso, não raro fazem propaganda quando apregoam desenvolverem jornalismo, como no caso das coberturas extremamente enviesadas da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), acontecida em dezembro último.
Mas como hoje existem mais brechas para driblar o cerco das tradicionais indústrias culturais, a Confecom realizou-se com a adesão e os resultados satisfatórios, contribuindo para a conscientização de que a comunicação, tendo origem e repercussão públicas, deve ser discutida por toda a sociedade. O controle já existe e não tem como deixar de existir nas sociedades complexas: o que se deve refletir é a mudança de um patamar de controle privado por outro, de controle público. Para isso, é preciso o engajamento do máximo possível do conjunto social, numa discussão que ainda tem muito a ser travada e avançada.
Já no plano econômico, as dificuldades são mais novas, mas não menos graves. Vêm desde os anos 90 do século passado e passam pela proliferação de novas e antigas plataformas de distribuição de conteúdos tradicionalmente concebidos como próprios da televisão. Com isso, ao mesmo tempo em que mais agentes buscam a atenção do público (a ser trocada por dinheiro no mercado, quando se tratam de empresas, a forma hegemônica), é fragilizado o próprio princípio de venda de publicidade, já que não há uma garantia de que o consumidor de televisual prestará atenção nos intervalos comerciais e mesmo que não trocará de canal.
Tudo isso molda a Fase da Multiplicidade da Oferta, a qual caracteriza a TV na atualidade, promovendo a intensificação da disputa entre os capitais, o que implica em maior popularização dos conteúdos e, ao contrário do que indica o senso comum, menos diversidade, já que, ao obter êxito, um formato ou temática passa a ser insistentemente explorada pelos demais competidores. A concorrência não se dá mais somente intramídia, mas de forma intermídia, com operadores culturais em suportes diversos, disputando a atenção do público. O problema segue intensificando-se, pela aceleração da inovação tecnológica.
O receptor mudou, e, hoje, por todas as transformações que afetaram e afetam o mundo, quer participar mais, tendencialmente rejeitando um sistema com poucas opções e uma baixíssima capacidade de intervenção, até para definir quais horários assistir às suas atrações preferidas. Há uma nova TV em ebulição, que está na Internet, em aparelhos móveis (como o telefone celular), na fila, no avião, no ônibus, no trem, no elevador e até no televisor conhecido de todos. Tal surgimento de novas concepções televisivas desestabiliza os atuais concessionários, radicalizando a Fase da Multiplicidade da Oferta e permitindo afirmar-se que o amanhã será ainda mais diverso do hoje. Mas em qual direção dependerá dos movimentos da humanidade, reforçando hegemonias ou criando novas circularidades.
*Professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coordenador do Grupo de Pesquisa CEPOS (apoiado pela Ford Foundation), doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e vice-presidente da Unión Latina de Economía Política de la Información, la Comunicación y la Cultura (ULEPICC-Federación).
Fonte: Revista IHU Online