"Som & Fúria", a minissérie exibida pela Globo no mês de julho, na faixa das 23h, provou que a superação é possível. Em primeiro lugar, a superação da indústria, já que se trata de um momento histórico da teledramaturgia brasileira, confirmando a capacidade nacional de fazer televisão, muito além dos produtos de baixa qualidade que via de regra povoam as telas dos brasileiros. Em segundo lugar, traz uma dupla superação, a de Felipe Camargo: de um lado, supera-se como ator, fazendo não só a mais importante interpretação de sua carreira, mas uma das mais relevantes da teleficção do país; de outro, como ser humano, dá a volta por cima e, depois de tantos problemas pessoais, assinala que um recomeço sempre é possível.
Com bom humor, os 12 capítulos da série transformaram a obra de Shakespeare em algo plenamente inteligível à população em geral, o que não chega a ser uma surpresa, sendo o trabalho do autor inglês popular, em sua origem. O interessante é que essa realização, desenvolvida em parceria com a O2 Filmes e baseada no original canadense Slings and Arrows, consegue levar referentes culturais diferenciados ao telespectador sem ser um produto hermético, fechado, inteligível preferencialmente por iniciados, como as minisséries A Pedra do Reino e Hoje É Dia de Maria (em suas duas jornadas), que chegaram a um nível de desconstrução quase inadequado para uma rede generalista aberta (e de grande audiência).
Ao retratar os encontros e desencontros da (shakespeariana) Companhia de Teatro do Estado, a produção ficcional mistura drama e humor, de forma inteligente, lúdica e provocadora. Trata-se de um legítimo produto de estoque, com muitas chances de reexibição e vendagem, tendo sido gravado no segundo semestre de 2008, com direção do premiado diretor de cinema Fernando Meirelles. Se os resultados de audiência nacional foram fracos – com índices inferiores ao controverso "Toma Lá Dá Cá", que ocupa a mesma faixa nas terças globais –, sem dúvida é um bem cultural de larga capacidade de realização no mercado global, com perspectiva de comercialização especialmente para canais televisivos europeus.
Por tudo isso, é da maior importância a decisão da TV Globo, de garantir uma segunda temporada da série, a qual deixou vontade de ver mais entre os telespectadores que souberam apreciá-la, reconhecendo seu elevado valor artístico (isso sem falar no que representa simbolicamente para a emissora, como a única no país a desenvolver e programar conteúdos com esse potencial reflexivo, em especial sobre a arte – ou sobre a existência humana). Momento de dramaturgia apurada, em todos os seus aspectos, partindo da direção de ator, chegando ao acabamento final e passando por roteiro, cenografia, figurino, trilha sonora, edição e fotografia, poderá repetir o êxito artístico se, dentre outros fatores, mantiver a escalação de um elenco de primeira linhagem, começando por Felipe Camargo.
A manutenção de Felipe Camargo como protagonista justifica-se porque ele superou a si próprio, fazendo dessa a sua principal atuação na TV. Sua capacidade interpretativa foi exacerbada, levada ao extremo, fazendo duos de qualidade superior com o também talentosíssimo Pedro Paulo Rangel. Outros ótimos atores – como Dan Stulbach, Andréa Beltrão, Daniel de Oliveira, Paulo Betti e Débora Falabella – tiveram um excelente palco para demonstrar seu talento, mas foi Felipe Camargo que se mostrou um intérprete até então ainda não plenamente revelado na televisão, aproveitando-se positivamente da chance renovada. Um exemplo profissional e humano, a ser apreendido por todos, num espetáculo onde o papel principal foi o de Dante, vivido por Camargo, não o de Hamlet.
Ante tudo isso, fica evidente que a TV generalista aberta pode também ser o espaço para a diversidade, apresentando conteúdos de matrizes diversas para públicos distintos, o que, de algum modo, representa um lócus de encontro e de partilha entre culturas, grupos e classes sociais. São esses momentos, mais raros do que deveriam ser, que fazem da televisão aberta brasileira um instrumento além do mercadológico, levando a cultura universal a públicos distantes dela, enquanto, simultaneamente, provocam no consumidor (neste caso empoderado como cidadão) a capacidade de abstração, de reflexão ou de simples fruição da arte, na sua mais alta acepção. Além do mais, a produção desvenda e coloca as artes cênicas no seu devido lugar, como grande ambiente de interpretação e de aprendizado, para todos os públicos, se bem que, em "Som & Fúria", é a TV que pedagogicamente dá espaço ao teatro.
* Professor titular do PPG em Ciências da Comunicação da Unisinos, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia.
Fonte: Zero Hora.