quinta-feira, 16 de julho de 2009

Afirmando a necessidade de uma base teórico-epistemológica autóctone


16 de julho de 2009, do Rio Grande outrora guasca e brioso, Bruno Lima Rocha

No texto que segue apresento uma argumentação que leva a concluir pelo uso e desenvolvimento posterior do conceito de tomada de posição. O argumento central por mim levantado aqui é a necessidade da afirmação de uma base teórico-epistemológica autóctone como pré-condição para o desenvolvimento tanto da produção técnico-científica nacional como das distintas formas de ativismo político-social.

Reconheço que de sua parte, a institucionalização das ciências sociais e um novo paradigma – dentro deste sistema e regime político - necessita de uma relação de acomodação e estabilidade institucional para com o Estado, isto sendo válido para os países latino-americanos. Mas, se e quando o grau de crítica e de levantamento de problemáticas e possibilidade de execução de soluções apontadas pelas ciências sociais se contrapõe com os poderes de fato constituídos - a ordem pós-colonial e o arranjo das classes dominantes locais- é justo quando a estabilidade institucional (que para tal ser estável necessita ser contínua) é posta em risco.

Observamos também que a temática da dependência, e até mesmo da dependência estrutural, é central e permanece válida desde a etapa do Estado-desenvolvimentista. Nesse item, ninguém teria mais autoridade para relacionar dependência com a episteme necessária para superá-la (ou sequer compreendê-la) do que o economista autodidata brasileiro Celso Furtado. Justo por isso, e para não escapar da redundância, aponto dois pressupostos teóricos de Furtado.

O primeiro que ressalto é “clássico”, diz respeito à própria formulação da categoria dependência e suas formas de análise econômica. Em “Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, Elementos de uma Teoria do Subdesenvolvimento” (Furtado in Bielchowsky, 2000, nota1), o economista trata e discorre das condições necessárias para a compreensão do fenômeno histórico latino-americano. Furtado diz textualmente que “a teoria do desenvolvimento que se limite a reconstituir em um modelo abstrato - derivado de uma experiência histórica limitada”, e depois segue, “as articulações de uma determinada estrutura, não pode pretender elevado grau de generalidade” (p.241). Ou seja, é necessário um processo de pensamento derivado de um determinado momento histórico, próprio da sociedade (ou da região geopolítica) sobre a qual se quer incidir.

O subdesenvolvimento, como fenômeno derivado da condição colonial e pós-colonial, tem de ser visto como um fenômeno específico, e necessita de um esforço de teorização autônomo (p.262). As simples analogias da parte dos economistas, de receituário balizado pelas experiências das economias desenvolvidas, resultam em soluções inaplicáveis para a superação da condição de subdesenvolvimento (p.262). Vê-se que a carga de críticas feita no campo das ciências sociais por Guerreiro Ramos, sociólogo em mangas de camisa, já na década de ’50 é reforçada por Furtado, tanto na formulação teórica como na execução de programas derivados destas mesmas formulações.

Dentro de um universo de ciências sociais e humanas abertas, incluindo aí a economia, podemos observar que esta crítica continua e permanece mais de quarenta anos depois. Furtado em entrevista a revista Caros Amigos (fevereiro de 2003, pp. 30-35), reafirma a questão do pressuposto e do problema teórico de cientistas sociais e economistas munidos de referencial teórico inaplicáveis para nossa realidade. Estas falsas soluções aplicadas em nível de macroeconomia teriam suas origens, segundo Furtado (2003), na incapacidade dos economistas em compreender um sistema econômico brasileiro com algum grau de autonomia.

É por isso que nunca o “possibilismo” do receituário econômico dotado de matrizes no Centro do capitalismo não abre perspectiva de mudança (2003, p.30). De outra parte, a própria reflexão fica distante da execução, se reflete e não se desdobra em ação, não há repercussão contundente a partir do esforço reflexivo (2003, p.31). Mais uma vez, observamos que Furtado apregoa a identificação do objeto da economia, que segundo ele não é o nível econômico, mas o social, levando à outra condição de formulação teórica e possibilidade de incidência sobre a realidade nacional.

Neste brevíssimo artigo de opinião e teoria, expresso o diagnóstico de que as ciências sociais e humanas na América Latina estão no meio de uma luta interna e constitutiva. Esta é a temática teórico-epistemológica, onde a intencionalidade e a perspectiva do cientista/analista/formulador podem habilitar ao rompimento da dependência científica e da dupla identidade (colonizador e colonizado).

A tomada de posição perante a identidade e as questões de fundo

No texto proporcionamos uma breve visão crítica a respeito de alguns dos dilemas e disputas de perspectiva política e teórico-epistemológica para os latino-americanos em geral. As bases teórico-epistemológicas autóctones, incluindo a dimensão ontológica - equivalente da ciência para a dimensão ideológica para a política – necessitam de operadores à altura do desafio de gerar seu grau de existência e validade conceitual. É nas questões de fundo, nos conflitos centrais de uma sociedade concreta e de um país, que quando aplicadas na política científica e acadêmica, filiam ou não este setor a uma ou outra posição. Ao elencar a questão de fundo estratégico e posicionar-se perante a mesma, o cientista social obtém sua perspectiva e proximidade/afastamento do objeto. Aponta assim sua capacidade e/ou vontade política de incidir sobre a sua própria realidade.

Para isso é necessário apresentar, expor e defender o conceito de tomada de posição. Reitero assim que:

TOMADA DE POSIÇÃO = lugar de fala + posicionamento político + pressupostos teórico-metodológicos + reconhecimento de identidade coletiva

Esta afirmação diz respeito tanto ao posicionamento do trabalhador intelectual como de seu papel no contexto que pretende analisar e incidir. Tal incidência pode se dar tanto como produtor de teoria e bens simbólicos como no trabalho diretamente vinculado a formas diversas de ativismo político e participativo.


Nota 1: Este texto trata-se do Capítulo 4, da obra clássica de Furtado de 1961, do mesmo título, Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura. Na coletânea que sacamos este texto, a origem é da edição argentina de 1971.


Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas da Unisinos (IHU)


Bruno Lima Rocha é doutor e mestre em ciência política pela UFRGS, jornalista graduado na UFRJ, docente em ciências da comunicação e Pesquisador 1 da Unisinos, membro do Grupo Cepos e editor do portal Estratégia & Análise