Por Bruno Lima Rocha*
Inicio minha contribuição neste espaço abordando um tema delicado. Não se trata necessariamente dos supostos esquemas de corrupção que estaria envolvendo o Executivo estadual tendo a economista neoclássica Yeda Crusius à frente. A intenção das modestas linhas que seguem é fazer um diálogo a respeito das possíveis travas ao impedimento e conseqüente derrubada do governo tucano no pago. Vejo esta abordagem como até agora pouco ou nada explorada, e reconheço que o assunto é no mínimo delicado.
Faço uma ressalva antes de seguir. Quero discutir uma hipótese. A de que os que hoje são oposição no parlamento gaúcho não têm a vontade política necessária para derrubar um governo cambaleante. Isto não representa manobra diversionista e tampouco uma cortina de fumaça tentando escamotear a crise política sem precedentes que se encontram as elites decisórias e as respectivas instituições estatais na província. Entendo que estamos num ambiente de desconfiança coletiva e como tal é essencial para qualquer operador, analista, participante e leitor atento acompanhar o desenrolar dos fatos e suas derivações. Esta abordagem é mais do que válida, e o tema já vem sendo coberto pela mídia comercial e alternativa do Rio Grande. Para os leitores mais interessados, tomo a ousadia de propor a leitura cotidiana da página de jornalismo digital, a excelente Nova Corja. Mas, repito, não é disso que trata o presente e breve artigo.
Retomo aqui algo que foi debatido durante e após a jornada repressiva de junho de 2008 tendo à frente o então comandante-geral da Brigada Militar, coronel de polícia Paulo Roberto Mendes. Naquele gélido final de outono, o coronel Mendes foi um dos artífices que segurou Yeda Crusius no Piratini. Os custos democráticos dessa “governabilidade” incluem nesta fatura algumas dezenas de cabeças e braços quebrados. Mas, naquele momento, o ápice da crise implicava uma avançada do protesto popular disposto a pagar os preços necessários para cumprir uma vontade política. Não foi o que se viu.
A maior parte dos operadores políticos centrou seus esforços no relatório final da CPI do DETRAN-RS, projetando sua figura individual. Os parlamentares daquela Comissão alimentaram, através de sua performance política e midiática, suas possibilidades eleitorais em dois momentos. Um, no imediato, na eleição municipal cuja campanha começaria no segundo semestre de 2008. No segundo momento, na projeção de seus nomes para as eleições gerais de 2010. Ou seja, estaríamos neste momento vivendo o início do segundo tempo da partida cuja meta é desgastar o governo de Yeda, e não retirá-la.
Reafirmo o que disse em outras situações e espaços. Relatório final de CPI é uma peça de julgamento político, quase sempre sem conseqüências legais diretas. Vejamos o relatório final das duas CPIs que analisaram o chamado mensalão. O procurador-geral Antonio Fernando de Souza formalizou a denúncia contra 40 acusados do esquema de compra de votos na Câmara Federal e ninguém teve o julgamento concluído até o presente momento. O mesmo se deu em escala estadual, com os acusados da Operação Rodin. Em tese, a juíza Simone Barbisan Fortes, da 3ª Vara Federal de Santa Maria deveria concluir todo o processo no correr de um ano. Já estamos nos aproximando da data prevista e o caso está longe de terminar. Mais uma vez eu pergunto qual o sentido de protelar uma luta social urgente substituindo-a por uma agenda institucional?
A polêmica não é de pouca monta e traz em si a própria concepção de militância popular e independência das entidades sociais para com os partidos eleitorais. Pode-se perguntar, porque o conjunto de entidades do movimento sindical, estudantil e popular aceitou fazer uma luta pela metade (a de maio e junho de 2008), subordinando suas urgências de embate contra o eucalipto e o gerencialismo no serviço público para a pauta eleitoral? A única certeza conceitual que tenho é dura de ser admitida. A subordinação de uma agenda sobre outra opera como freio da reivindicação direta, impedindo a ação estratégica em nome de um projeto geral de governo.
Como estamos em regime de democracia representativa, sob a lógica do partido de intermediação, a acumulação de forças deve ser traduzida em voto eletrônico na urna e não em setores de classe mobilizados através de auto-organização.
Agora se repete a mesma história. Ouvi de mais de uma dezena de militantes, todos com níveis de responsabilidade em suas entidades, a dúvida se deveriam ir a fundo ou não no processo que pode vir a derrubar o governo Yeda Crusius. O raciocínio toma por base o casuísmo. Argumentam que se Yeda cair, Paulo Afonso Feijó (o ex-presidente da Federasul que é vice pelo DEM) pode tentar acelerar processos de privatização do que restou do Estado gaúcho. Afirmo que o argumento é falso. Se a economista da UFRGS sair o vice que é empresário não governa. Isto porque não terá condição alguma de exercer o final de mandato que lhe resta. Viveria uma situação parecida com a que padecera a petista Benedita da Silva quando assumiu o governo fluminense em 2002, completando os meses que restavam para Antônio Matheus (o radialista Anthony Garotinho). Assim, não há o que temer de um hipotético e pouco provável governo Feijó.
Um tema recorrente entre militantes da oposição política no Rio Grande é cogitar “se não seria melhor manter Yeda no cargo e não forçar um impedimento, facilitando assim uma vitória eleitoral”. Repito este argumento também como falso. Diante desse raciocínio, não haveria luta política para derrubar o hoje senador pelo PTB/AL e base de apoio do governo Lula, Fernando Collor de Mello, no dia 2 de outubro de 1992. Qualquer analista irá discernir com precisão de que a queda de Collor foi uma soma de fatores, incluindo a desconfiança do empresariado nacional e do capital estrangeiro para com a sua conduta.
Mas, independente do cenário complexo onde por seis meses, de maio a outubro de ‘92, se desenvolveu a seqüência de escândalos e defecções na interna da Casa da Dinda, a experiência foi válida. O povo brasileiro experimentou a sensação de uma vitória pontual, articulada nos bastidores, mas ganha nas ruas. Não há luta popular sem conflito interno e nem “processo social puro”. No longo prazo, os efeitos são positivos no sentido de mudar o eixo da democracia realmente existente no Brasil, de representativa e oligárquica, para participativa e popular.
No momento em que o descrédito e a desconfiança para com as instituições de governo e de representação política abundam na Província, é necessário girar o eixo político dos gaúchos. Não podemos delegar a decisão da permanência ou não de um governo a um inquérito policial. Assim, duas medidas deveriam ser emergentes. Uma medida é Exceção da Verdade e a divulgação do que existe de prova material contra o governo gaúcho e sua base de apoio. As acusações se centram nas operações da Polícia Federal, a Rodin e a Solidária, e envolvem quase toda a elite política do pago.
A segunda medida é uma decisão política. Embora a CPI da Corrupção seja algo importante, as forças da esquerda social gaúcha não devem apostar todas as suas energias nesta Comissão. Mais uma vez remonto a Era Collor. Seria muito mais confortável para o descalabro da época ter de enfrentar uma ou mais CPIs simultâneas do que o movimento Fora Collor nas ruas. O oposto se deu durante a crise política de 2005. Com a ausência da base popular mobilizada, não houve como traduzir a indignação popular com o Mensalão em protesto direto contra o governo que se aliara com os herdeiros da ARENA. Nunca se pode esquecer que a composição da aliança do governo Yeda no Rio Grande é muito parecida com a de Lula no Planalto.
O cenário político profissional não é promissor. Para decidir a batalha da crise política gaúcha, onde a desconfiança coletiva atira no limbo a suposta reputação das legendas estaduais, não se pode contar com quem também é responsável por tudo o que ocorre no país. Um povo adquire confiança quando se move e percebe suas vitórias, mesmo que pontuais. É apostando na capacidade de reação popular que se acumula força para outro projeto de democracia. É neste caminho, o da independência das entidades, onde se pode trilhar e fortalecer a democracia participativa.
*Bruno Lima Rocha é editor do portal Estratégia & Análise; doutor e mestre em ciência política (pela UFRGS), graduado em jornalismo pela UFRJ, docente de ciências da comunicação da Unisinos e pesquisador do Grupo Cepos.
Fonte: IHU - Instituto Humanitas Unisinos