quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A esquerda bolivariana para além do oficialismo


Bruno Lima Rocha, Caracas, Venezuela, 03/02/2009

Assim como na semana passada, escrevo o artigo daqui de Caracas. Dessa vez o tema são os conflitos internos do chavismo e o papel de sua ala esquerda em busca de protagonismo. Ao contrário do que possa parecer, o movimento bolivariano está longe de ser homogêneo. Para entender esta dinâmica é preciso retornar ao mês de abril de 2002. Quanto da tentativa de golpe de Estado, o presidente eleito se recusou a resistir, apostando no desgaste e desarticulação entre os golpistas.

A reação veio da população medianamente organizada. O “morro literalmente desceu”, chegando a haver mais de 100 mil pessoas nas ruas protestando contra o intento. As medidas espontâneas de rodear o Palácio de Miraflores, envolver em cordões humanos a sede do canal estatal retomado pelos bolivarianos e cortar as entradas de Caracas com barricadas, geraram o impasse necessário para a rearticulação do governo de Hugo Rafael Chávez Frías. Na hora de fazer as contas, não foram forças oficialistas do então Movimento Quinta República (MVR) que garantiram o governo, e sim as bases sociais assistidas pelo Estado, mas organizadas desde antes de 1998.

Tais setores que conformam hoje a ala radical da chamada “esquerda bolivariana” defendem o conceito de poder popular exercido diretamente pela população, indo além do controle do aparelho de Estado. Alguns coletivos político-sociais vêm da histórica Paróquia (distrito) 23 de Enero, como o Simón Bolívar, Alexis Vive, La Piedrita, Tupamaros e Lina Ron. Outros, são movimentos mais amplos, como as Comunidades al Mando, Misión Boves, Frente Campesino Ezequiel Zamora e a ANMCLA (associação de meios de comunicação alternativos).

Todos eles se dividem pelo tipo de estrutura interna (se vertical ou horizontal) e na relação com o Executivo. Existe certa independência política frente ao governo e lealdade inquestionável ao processo bolivariano. Todas estas agrupações têm militantes mortos em seu histórico, boa parte deles executados pela repressão política da chamada 4ª República (até 1998). Daí se reforça a intransigência com a Oposição. Para desespero do próprio Chávez, não são raros os confrontos diretos, algumas vezes a tiros, entre o setor organizado pelo Comando Angostura (direita pelo Não à Emenda) e estes coletivos.

Tampouco são raros os conflitos (ainda não-violentos) com o aparato governista, dominado por dirigentes chamados de “direita endógena”. O apelido se justifica na medida em que sua prática política ainda se parece com os tempos dos “adecos” (Ação Democrática). Isto se dá por várias razões as quais destaco três. Uma, o fato do servidor público venezuelano não entrar por concurso e sim por indicação. Como Chávez acabou com a estabilidade vitalícia, cada grupo que toma uma fatia de poder demite uma leva e põe os seus, do secretário de governo ao contínuo de repartição. Outra é que, neste processo político, o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV) é convocado por Hugo Rafael depois de iniciada a acumulação de forças e não ao contrário. Ou seja, o âmbito massivo de inclusão política se dá somente após derrotarem a sabotagem na PDVSA no início de 2003. Por fim, os critérios do presidente para formar sua equipe direta são mais de amizade pessoal do que de capacidade político-técnica. A lista de reclamações contra os “anéis de entorno ao comandante” é enorme.

Podemos afirmar que na Venezuela o grande jogo do poder tem duas arenas simultâneas. Uma, é marcada pelo calendário eleitoral-plebiscitário (14 pleitos em dez anos), onde se opõem o bloco da direita e a aliança chavista-bolivariana. Outra, dentro deste segundo campo, se dá na interna do governo e do movimento. Mesmo vencendo na primeira arena, a definição de país e de sociedade caberá ao setor hegemônico dentro do movimento bolivariano. Até o presente momento, a direita endógena vem ganhando.