quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

A democracia política de base libertária


por Bruno Lima Rocha


É comum escutarmos que a democracia representativa está em crise e ao mesmo tempo o sentido de democracia política está cada vez mais em alta. Concluindo o final da primeira década do século XXI e observando a luta anti-globalização na emergência de novos agentes sociais, chegamos a algumas conclusões. Um, que os valores democráticos de liberdade de expressão, reunião, manifestação, crença e difusão de idéias são essenciais a uma sociedade igualitária. Dois, que a idéia de democracia como igualdade jurídica é válida e necessária para evitar qualquer tipo de sociedade elitizada. Três, que o ritual democrático com desigualdade econômica e injustiça social é uma casca vazia e não leva a lugar algum.

Nada do que estamos escrevendo aqui é novidade para a matriz de pensamento libertário. Esta teoria na forma de Poder Popular anti-estatista recobra valor e força a partir da última década do século XX. As esquerdas existentes no mundo hoje se vêem na obrigação de dialogar com um conjunto de movimentos, identidades, defesa de interesses e autonomias pouco influentes até os anos ’80 e essenciais após o início da luta contra a globalização do capitalismo de tipo financeiro e telemático. O tema da liberdade como valor essencial ao socialismo, e do protagonismo do povo podendo decidir por sua conta sem a tutela de uma combinação de tipo Partido-Estado torna-se o pilar de uma esquerda social que hoje está na primeira linha da luta popular no mundo todo.

Para concretizar essas vontades em um sistema de idéias que possa se tornar teoria política, falta pouco, mas ainda resta um trecho a percorrer. O foco da disputa no campo dos conceitos (ou seja, das ferramentas de análise e interpretação das realidades) é justo na forma de um sistema político de base plural e igualitária. Ou seja, necessitamos reconhecer o direito a existência da diversidade dentro da justiça social. Isto implica pensar em formas de organização social onde a dimensão política (de organizações e partidos de esquerda); religiosa (sem proselitismo nem controle da educação ou dos meios de comunicação); de identidades (sejam étnicas, sexuais, culturais, etc.); territorialidades (como os controles comunais); do mundo do trabalho (na gestão direta e coordenada com as maiorias) e dos mais variados grupos de interesse estejam contemplados nas decisões fundamentais da sociedade.

Para formalizar estas idéias é preciso um passo anterior, que é simples. As esquerdas de intenção revolucionária necessitam compartilhar da idéia da liberdade política funcionando sobre uma base de justiça social. O que nos divide, é saber se essa base societária será estatal ou não. O que nos une é afirmar esta liberdade política dentro da multiplicidade de agentes e sem a disputa estéril por direcionamentos e vanguardas. A política tem regras duras e é um jogo para gente grande. A hegemonia, a referência e a gravitação se dão pelo peso relativo de cada força atuando no tabuleiro de possibilidades. Mas ter gravitação não implica necessariamente em ter conduta visando hegemonismo ou direção total de uma luta. É possível avançar na horizontalidade e uma experiência político-social serve de exemplo.

Ainda na década de ’80, o Peru vivia uma situação de guerra revolucionária onde duas forças políticas atuavam. Uma, a mais conhecida e de linha maoísta, era o Partido Comunista do Peru / Sendero Luminoso Outra, que ganhou relevância internacional com a ação do seqüestro e toma da Embaixada do Japão em Lima (1996-1997), era o Movimento Revolucionário Tupac Amaru / Exército Revolucionário Tupacamarista (MRTA). Para os fins deste artigo, a experiência de controle territorial do MRTA na Frente San Martin é sem dúvida a mais interessante.

Trata-se de um território onde se mescla selva e montanha e fica distante 886 kms de Lima, capital do país. Nesse terreno, nos municípios onde o MRTA operava, era a força hegemônica em armas e na maioria das vezes tinha o monopólio da força. Mas, sabiamente, isso não implicou o monopólio da representação política. A estrutura da sociedade foi dividida em Assembléias Regionais Populares, onde todos os grupos de interesse, sindicatos, movimentos populares, delegados de micro-regiões e organizações de esquerda tinham seus delegados com voz e voto. O MRTA era uma força a mais nesse universo de decisão política, com o mesmo peso de voto dos demais. Das Assembléias Regionais saíam delegados para a Assembléia Nacional, que era, logicamente, o conjunto de representações e territórios onde os tupacamaristas tinham hegemonia. Esta Assembléia não contava com delegados regionais de zonas onde o Sendero era hegemônico e menos ainda de lugares onde a democracia representativa burguesa e estatal se fazia presente. Por fim, é desta instância mais ampla de delegação de base e regionalizada de onde saíam linhas e demandas para a política geral nos lugares onde o MRTA atuava.

Que lições e exemplos podem ser tirados da experiência de San Martín? Primeiro, que mesmo nas condições mais adversas é possível a organização de base e o estímulo a participação política. Segundo, que a diversidade dentro da igualdade de direitos e justiça social é perfeitamente aplicável. Isto se dá se a hegemonia da força e a gravitação política têm as condições de exercer este tipo de democracia. Terceiro, que se no caso, não fosse apenas o MRTA no uso da força, mas uma série de organizações políticas compartilhando o mesmo plano de trabalho das Assembléias (Regionais e Nacional) seriam perfeitamente executável. Quarto, que qualquer organização social de protagonismo popular sempre se verá confrontada com o status quo e a estrutura de poderes das classes dominantes. A variável é o tipo e forma de confrontação, podendo ser desde uma luta avançada e dura como a dos tupacamaristas peruanos dos anos ’80 e ’90 até a luta de massas e popular exercida pelos movimentos indígenas e comunitários em algumas cidades e regiões latino-americanas a partir do ano 2000.

Quinto e por fim, é essencial compreender que o conceito aplicado pelo MRTA à organização social em San Martín é o de PODER POPULAR. Isto significa uma estrutura de delegação política aos militantes votados diretamente pelos segmentos do povo organizado, que constroem instâncias de regulação social e é de onde vem a soberania popular por excelência. Esse modelo, aplicado em países onde o Estado existe e não está em guerra com o povo mas, é alvo de disputa de blocos de poder (como acontece neste momento em Venezuela), entra em funcionamento quando as organizações políticas e movimentos populares disputam as parcelas de poder não-estatal através de conselhos comunais, mesas técnicas (para temas como água, luz, saneamento, saúde e etc.) ou território auto-organizados (de forma total ou parcial). Por fim, um sistema político semelhante poderia ter sido aplicado na Catalunha de 1936 a partir do Comitê Central das Milícias, no caso, sob hegemonia e controle social quase total da CNT/FAI. O mesmo se deu na Frente de Aragón e em outras regiões do planeta com ou sem hegemonia integral dos anarquistas organizados.


Na América Latina o poder do povo vem se expressando desde as guerras anti coloniais, sintetizando num conjunto de experiências a sabedoria da auto organização de base com as matrizes federalistas e libertárias.