terça-feira, 20 de janeiro de 2009

O que diria Orwell sobre este Big Brother?

Por Ricardo Bonalume Neto


Não é difícil imaginar que o criador do Big Brother ficaria horrorizado se visse o programa de TV que usurpa sua criação. "Por que essas trivialidades monstruosas são tão absorventes? Apenas porque toda a atmosfera é profundamente familiar, porque o tempo todo temos a sensação de que essas coisas acontecem 'conosco'", disse o escritor inglês George Orwell (1903-1950).

A afirmação poderia ter sido feita em uma crítica ao programa. Na verdade, era um comentário elogioso sobre o romance "Trópico de Câncer", de Henry Miller. "E temos essa sensação porque alguém resolveu abandonar a linguagem convencional do romance comum para expor a 'real-politik' do íntimo. No caso de Miller, não é tanto uma questão de explorar o mecanismo da mente quanto de reconhecer os fatos e emoções cotidianos", continuou Orwell.

Já a trivialidade do 'BBB' parecer ser mesmo trivial, como a vovó querer fazer bolinhos de chuva ou os "romances" fingidos ou não. O Big Brother, "Grande Irmão", original era o ditador supremo do mundo que Orwell imaginara ao escrever em 1948 o romance "1984", uma utopia negativa. Um sofisticado aparato de estado policial mantinha uma "teletela" na casa de cada um, que vigiava 24 horas por dia, como nas câmeras do programa de TV.

Orwell era um fino autor de ensaios políticos e culturais. Depois do horror inicial de ver as trivialidades, ele partiria para sua análise. Afinal, fez ensaios sobre temas variados da cultura de massas, como quadrinhos para garotos e cartões-postais "picantes". Ele não negava o potencial de entretenimento da cultura "pop", mas deplorava muito da ideologia por trás --como o esnobismo, o narcisismo, o consumismo.

"Locais de prazer"

No mundo de "1984", uma função dos intelectuais é produzir essa cultura para os "proles", o vasto proletariado que vivia dominado pelo partido no poder. Orwell trabalhou para a rádio BBC durante a Segunda Guerra, um lugar que ele descreveu como "a meio caminho entre uma escola de moças e um asilo de lunáticos".

A atmosfera artificial da casa do 'BBB' não escaparia ao seu escrutínio. Basta ver o que escreveu sobre a nova moda de "locais de prazer", em 1946: "Você nunca está sozinho. Você nunca faz nada para si próprio. Nunca se está à vista de vegetação selvagem ou objetos naturais de qualquer tipo. Luz e temperatura estão sempre artificialmente reguladas".

E o que diria ele do tipo de pessoa selecionado para o programa? Provavelmente faria análise semelhante à que fez sobre as mulheres dos anúncios de revistas de moda em 1946, um "estilo decadente de beleza", que lembra o mundo "fashion" de hoje. "Quadris estreitos são gerais, e mãos delgadas não-preênseis como as de uma lagartixa estão em toda parte", diz ele da mulher considerada sexy então.

Se visse a versão brasileira do programa, teria outra opinião. Aqui os quadris preferidos são os fartos, pois várias das moças já entram na casa como candidatas a posar para a "Playboy".

O jornalista Ricardo Bonalume Neto, 48, é autor de "George Orwell - A Busca da Decência" (editora Brasiliense, 1984)

Fonte: Folha Online