terça-feira, 31 de agosto de 2010

Sísifo ou fênix?


Por José Marques de Melo*

O mito de Sísifo explica porque a natureza do trabalho jornalístico condena os profissionais da área a recomeçar suas atividades diuturnamente.

Trata-se de manter fidelidade à agenda que satisfaz as demandas cognitivas do público já conquistado e, ao mesmo tempo, subverter a rotina produtiva, pautando temas capazes de despertar o interesse dos destinatários potenciais.

Nesse sentido, a “maldição de Sísifo” impõe dupla jornada aos professores de jornalismo: um turno para educar os futuros profissionais conforme as exigências do mercado de trabalho; outro turno para pesquisar as transformações em processo, sintonizando-os com as tendências previsíveis na sociedade.

Por coerência, inclino-me a buscar o mito da Fênix para expor minha compreensão quanto às perspectivas que se apresentam ao ensino de jornalismo nesta conjuntura.

Durante 40 anos, desde a regulamentação da nossa profissão em 1969, vislumbramos um panorama que parecia estável. Mais do que isso: petrificado, pela garantia da reserva de mercado aos profissionais diplomados. A lei substituía o “vale tudo” estabelecido desde o início do século, reduzindo as oportunidades de acesso ao trabalho com carteira assinada somente aos jornalistas já registrados e àqueles que viessem a obter o registro, comprovando a formação universitária específica.

De repente, a inusitada decisão do Supremo Tribunal Federal, tornando inconstitucional a legislação em vigor, produziu uma reviravolta em nossa categoria, desconcertando mais ainda aos educadores dos futuros jornalistas.

Deixando de ser imperativo, o diploma de jornalista afigurou-se inócuo, ameaçando a existência dos próprios cursos. Sendo facultativa a posse do diploma, os vestibulandos pouco informados tendem a desistir da carreira. Por sua vez, os donos das escolas particulares regidos pelo imediatismo passam a cancelar os vestibulares, mesmo em instituições de qualidade, temerosos de enfrentar déficits orçamentários.

Diante dessa situação de pânico, temos que manter a prudência institucional, lembrando que o diploma de jornalista apenas deixou de ser obrigatório, mas não desnecessário. O Brasil vinha constituindo uma das exceções no panorama mundial, ao tornar compulsória a formação universitária dos profissionais contratados pelas empresas.

Apesar disso, no mundo inteiro, o ensino de jornalismo vem sendo demandado pelos jovens que pretendem ingressar na profissão. Justamente porque desejam obter competência laboral e prontidão cognoscitiva, fundamentais para disputar vagas no mercado de trabalho.

Felizmente, o empresariado tem valorizado a formação superior dos jornalistas. Mesmo aqueles diretores de veículos jornalísticos resistentes à obrigatoriedade do diploma têm declarado que vão priorizar a contratação de jornalistas diplomados.

O argumento é simples e consistente: as empresas não desejam regredir ao estágio em que formavam seus próprios recursos humanos. Obviamente, não renunciam à prerrogativa de recrutar candidatos pelo mérito, privilegiando os portadores de diplomas que atestam habilidades para a profissão.

Esta, aliás, já era a linha vigente na política de pessoal das empresas do ramo, tendo em vista que a mão de obra habilitada a ingressar na profissão inclui uma espécie de exército de reserva, pelo grande número de escolas existentes em algumas regiões. Apesar disso, os departamentos de RH das empresas consideram ilimitada a oferta de repórteres e redatores com prontidão para atuar nas seções de informação geral em comparação com o reduzido estoque de editores e chefes de reportagem capazes de dar conta de funções gerenciais nas editorias especializadas.

Tive oportunidade de ouvir e registrar essa queixa, ao percorrer as principais empresas jornalísticas durante a missão que me delegou o Ministro da Educação. Fui ouvir os anseios da sociedade, na presidência da comissão que elaborou as novas diretrizes curriculares para os cursos de jornalismo.

Certamente aqui está o ponto de partida para delinear as perspectivas do ensino no país. Trata-se de colocar em marcha uma estratégia realista, inspirada pelo mito da fênix, renascendo das nossas próprias cinzas.

Voltamos ao patamar delineado pela Fenaj em Curitiba, quando Luiz Beltrão estarreceu o plenário do congresso de 1953, defendendo a formação superior dos jornalistas profissionais.

Cumpro, aqui, a mesma tarefa que meu mestre desempenhou, há meio século, atualizando naturalmente sua proposta. Para corresponder aos anseios dos novos tempos, é inadiável ampliar a natureza da formação universitária dos jornalistas. Isso significa dizer: precisamos diplomar jornalistas habilitados pela graduação e pela pós-graduação.

A reivindicação de novos instrumentos legais para regulamentar a profissão deve ser abrangente, permitindo que tanto os egressos do ensino médio tenham oportunidades para aprender jornalismo na graduação quanto os portadores de diplomas em outras áreas do conhecimento tenham a chance de estudar jornalismo na pós-graduação, frequentando cursos de mestrado.

Sem esse tipo de abertura, não caminhamos em direção ao futuro. Trata-se de modelo experimentado há um século em outros países, que não podemos ignorar e tampouco resistir. Num caso ou noutro, a universidade continuará a ser fiadora da competência profissional.

Trata-se de estabelecer limites ocupacionais balizados por critérios cognitivos e não corporativos. Vamos reunir a persistência e a paciência de Sísifo à ressurreição e ao rejuvenescimento de Fênix.

* Professor titular da UMESP, professor titular aposentado da USP, presidente de honra da Intercom, presidente da Socicom, presidente da Confibercom e parceiro do Grupo de Pesquisa Cepos. Email: marquesmelo@uol.com.br.

Fonte: Revista IHU Online Edição 341