terça-feira, 16 de março de 2010

Acertos e deslizes fora da Globo

Por Por Valério Cruz Brittos, Andres Kalikoske e Éderson Pinheiro da Silva*

Ao longo de seus 45 anos, a TV Globo implementou estratégias e práticas empresariais direcionadas a estreitar seus vínculos com o telespectador brasileiro. Sua consolidação, como principal emissora nacional e uma das maiores do mundo, remete às mutações conformadas no cenário econômico-político implantado no país pelo golpe militar de 1964. Desde então, adaptou-se sem maiores dificuldades às transformações que o capitalismo passou a sofrer a partir dos anos 70 do século passado, inclusive contribuindo para a criação de uma ambiência social de aceitação das mudanças por parte da população.

Ante o melhor aproveitamento das condições de seu tempo, a liderança da TV Globo foi possível pela instauração de um padrão tecno-estético sólido, reconhecível como superior pelo público e numa época inviável de ser copiado pela concorrência. Apresentado como "padrão de qualidade", tal construção incorpora todo o aparato artístico e tecnológico global, conquistando alta credibilidade e carregando a ideologia da emissora, partilhada pelos militares e coadunada com o sistema. Ante tal pioneirismo, até hoje qualquer emissora brasileira que queira se aventurar em caminho semelhante tem de enfrentar esta barreira, com custos elevados de investimento e num mercado em declínio para a internet.

Carência de roteiristas

Projetadas nos mercados nacional e internacional como o principal produto da rede, suas novelas mobilizam elevada audiência, atingindo presentemente mais da metade dos televisores ligados no país. Este fenômeno dificulta a consolidação de um núcleo de teledramaturgia em outras estações, tanto que, num passado recente, a Band já foi o canal do esporte e o SBT chegou a abdicar de novelas e jornalismo. No entanto, algumas exceções devem ser levantadas, como Pantanal, escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Jayme Monjardim, que chegou a atingir 40 pontos na extinta Manchete e permanece sendo o melhor exemplo de êxito de uma telenovela nacional fora da Globo. No âmbito das produções latino-americanas, os impressionantes índices de Carrossel (da Televisa, que alcançou cerca de 25 pontos no SBT) mostram a versatilidade da economia da cultura.

A estratégia do SBT, desde o início de suas operações, foi a exibição de novelas mexicanas, para contrapor à produção nacional de teleficção da Globo, mesmo no prime time, com poucos sucessos e projetos descontinuados no ramo da teledramaturgia. A extinta Manchete, já agonizante na segunda metade dos anos 90, obteve bons resultados com Xica da Silva, escrita por Walcyr Carrasco (também autor da bem sucedida Caras & Bocas, dentre outros sucessos atuais da Globo) e dirigida pelo lendário Walter Avancini. A Record, a partir do estreitamento tecno-estético com a Globo, aumentou sua notoriedade desde Prova de Amor, novela de Tiago Santiago que contou com a direção de Alexandre Avancini.

Ainda que alguns exemplos isolados representem a vitalidade da novela brasileira, a Globo segue no topo por motivação estrutural-administrativa. Muitos roteiristas que atualmente atuam em outras emissoras não possuem o mesmo brilhantismo dos contratados pela Globo, sendo exceção o excelente trabalho dos veteranos Lauro César Muniz e Marcílio Moraes, na Record. A carência de uma equipe de roteiristas bem treinados, com fôlego e desprendimento para a rotina de uma novela, é um desafio aos canais que não contam com produção de teleficção contínua. A Record chega tarde a tal conclusão, inaugurando em 2010 sua primeira oficina de roteiristas. O SBT, que já recorreu a colaboradores advindos de uma igreja evangélica para escrever Revelação, de Íris Abravanel, apesar de mostrar fôlego com a contratação de Tiago Santiago, peca ao não treinar seu próprio time de escritores, que poderia ser formado por profissionais talentosos atuantes no cinema e na produção independente.

Um déjà vu televisivo

De 2001 a 2007, o SBT manteve um contrato de adaptação de novelas com a mexicana Televisa, produzindo 11 títulos ininterruptamente. Desta soma de dramalhões, apenas as esdrúxulas Pícara Sonhadora, Amor e Ódio e Canavial de Paixões atingiram relativa notoriedade. Em contrapartida, desde 2004 a Record aposta na contratação de profissionais da Globo, reproduzindo na emissora ligada à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) um modelo de realização similar, que se soma a investimentos em tecnologia de ponta. Apesar de fortemente questionada, a replicação do modelo permitiu à Record entrar firme na disputa pela vice-liderança, acirrando o mercado produtor de telenovelas fora da Globo (uma vez que SBT e Band também passaram a investir no gênero).

Entretanto, no presente momento a Record volta-se a remakes latino-americanos, ainda que adequando as produções ao seu padrão tecno-estético emergente. Mesmo sendo uma tendência mundial, a venda de roteiro implica problemas que envolvem concessões autorais, no caso da nova realizadora decidir-se por mudanças no script, e limites fronteiriços, que representam um obstáculo quando o produto é vendido a programadores internacionais. Em síntese, para uma emissora que busca a liderança, essa estratégia apresenta-se pouco eficiente e contraditória. Bela, a Feia, adaptação de texto do colombiano Fernando Gaitán, é safra desta empreitada e não vai bem. Apostando na trivial história da menina feia que carrega consigo uma beleza escondida, a novela registra uma média de sete pontos de audiência, mesmo já tendo sido remanejada para diferentes horários na programação. Ao custo de R$ 300 mil por capítulo, atesta que o dinheiro advindo de seu modelo de sustentação não está sendo bem empregado. Para dificultar a vida da feiosa (interpretada pela beldade Gisele Itié), a trama ainda conta com a concorrência da novela das nove da Globo, Viver a Vida, de Manoel Carlos.

Este panorama mostra que muito ainda deve ser feito para a consolidação de um núcleo de teledramaturgia fora da Globo. No SBT, a nova aposta é na regravação de Uma Rosa com Amor, sucesso dos anos 70 da Globo. Ainda que conte com elenco requintado, Betty Faria, Jussara Freire e Carla Marins terão que demonstrar muita habilidade e desenvoltura artística, com fortes doses de humor, para que as cenas não beirem o estilo pastelão, já que a história original trata de uma comédia leve e romântica. A Record escolhe seu próximo texto da Televisa, enquanto a Band está dublando a novela Casi Ángeles, produção argentina sem muito a dizer, assinada pela mesma criadora de Chiquititas. Neste contexto, será difícil o telespectador não se sentir em meio a um déjà vu televisivo. Isso facilita para a Globo, cuja tradição em fazer telenovela é reconhecida internacionalmente, não obstante suas ficções, neste momento, enfrentem dificuldades junto ao público, especialmente Viver a Vida, titular de seu principal horário.

*Respectivamente Professor titular no Programa de Pós Graduação em Ciências da Comunicação (PPG-CC) da Unisinos; mestre em comunicação e doutorando pela Unisinos ; Graduando de jornalismo pela Unisinos

Fonte: Observatório da Imprensa