A noite do Haiti é um canto infinito que parte do coração de Delmas e chega aos Champs de Mars e ao Palais National. A noite do Haiti é o canto dos vivos que choram os mortos e rezam por si mesmos. É o canto desesperado dos prisioneiros de Petionville, o condomínio-parque que foi atingido pelos terremotos duas vezes. É o canto vudu dessa mulher que agora não canta, não fala, mas grita a raiva reprimida de dia, colocando-se atrás de um pequeno grupo de pessoas. É um canto fúnebre infinito, que mistura orgulho negro e síntese crioula, as melodias esquecidas dos franceses e as canções ouvidas na rádio até ontem, antes que o grande tremor destruísse também a programação da Signal Fm, transformando-a em Rádio Terremoto.
A noite do Haiti não é apenas dos desalojados e dos sem-teto. Tomem, por exemplo, Benoit Plejeudi. "Veem? Aquela é a minha casa". Delmas está entre as zonas mais atingidas. As casas que caíram sobre si mesmas. O terremoto fez ao Citibank aquilo que nem a recessão havia ousado: todo no chão de um só golpe, ruínas sobre ruínas. Em cada esquina das ruas, os cartazes publicitários de Nino Cell anunciam maravilhas: quarta-feira passada, ele também fechou a sua sede protegida por aquele endereço propiciatório, Rue des Miracles, 117. Uma catástrofe. Para cada cada que veio abaixo, haviam talvez quatro, cinco que eles haviam erigido. O tremor de assestamento de ontem não teve piedade. Agora, o trabalho de demolição do Haiti está quase completo. Mas com a cidade destruída, aquele pouco que resta de pé é um tesouro ao qual se agarrar. O que fazer, senão? Misturar-se aos milhares de refugiados de Petionville, assediados pelos bandos de ladrões e estupradores?
"Aquela é a minha casa", diz Benoit, com a filhinha no braço, "esta é a minha família, estes são os meus vizinhos". O acampamento nasce do nada enquanto o sol está declinando. É um êxodo invisível e silencioso. Durante todo o dia, as construções achatadas são habitadas como se nada tivesse ocorrido. O quadro é surreal: na casa de Jeff Horacio ninguém se deu ao trabalho de colocar de pé a árvore de Natal derrubada pelo tremor. Mas isso ocorre de dia. De noite, todos saem: nas costas, um cobertor, um travesseiro, um lençol, qualquer coisa, enfim, que possa se transformar em uma cama. Lentamente, as ruas de Porto Príncipe são inundadas por um rio de famílias. E é então que a noite dos cantos começa.
Cabe ao chefe de família dar o início. Agora, é o momento de Benoit. Começa um canto em francês que, aos ouvidos de um ocidental ignorante, se parece às velhas canções de Henri Salvador. E, ao invés, aquela música tão relaxada e sensual é um canto religioso. Aqui no Haiti basta acenar à melodia para arrancar um sorriso de compaixão, de partilha de um destino. É "Reference 6 Creole", a canção mais conhecida dos "Chants d'Esperance", uma coleção de cantos da Igreja evangélica. "Desde que te conheço / desde que vi a tua luz". Em um segundo, toda a rua é um canto. Até os cães param, que, desde a tarde do terremoto, nunca deixaram de latir.
Agora, Benoit está de pé como um regente de orquestra. Nem o canto para mais. Dando a volta na esquina – pó e britas mesmo antes do terremoto – e recomeça outro.
Cada beco protegido por barricadas improvisadas: blocos de pedras, galões de gasolina, alguns pedaços de madeira. Uma proibição de acesso tímida. Servirá? Cada noite é uma aposta. Mas pelo menos aqui não existe o pesadelo do International Club. Não, não se deixem enganar pelo nome. O International Club faz parte do parque mais amplo de Petionville. Do lado de fora, estão, porém, as insígnias do ministério: "Protegemos o meio ambiente". Qual? Petit Bossimys é um jovem voluntário de Book of Hope. A associação evangélica está entre as mais ativas em nível local: haitianos por haitianos. Quando chega a noite, o International Club é um acampamento sem fim. E se no desespero há uma classificação, os cantos daqui vão direto ao primeiro lugar. Aqui, vocês nunca ouviriam "Haiti Cheri": "Terra do mar, maravilhoso sol". Isso é coisa da Caraibi Fm: esqueçam-na. Aqui até os "Chants d'Esperance" parecem de desespero.
Bisha Laroque é o médico do campo. O único. "Cerca de 20 voluntários entre enfermeiros e rapazes de serviços gerais. Mas como fazemos? Falta-nos tudo". A Cruz Vermelha, a ONU, as ajudas? "Nada de nada de nada. Precisamos de gases, barracas. Precisamos de água, comida. Precisamos de remédios. Este fedor? Não temos água para beber: como podemos pensar no resto?".
O doutor Laroque até segunda-feira passada trabalhava no Dash, o hospital de Dalmas 35, uma outra estação do calvário do Haiti: o terremoto impiedoso também fechou aquele. Agora, Laroque une sua voz aos cantos da noite. Diz Luiji Looco, que é o chefe do campo: "A segurança? Fazemos o possível. Na noite anterior, por exemplo, houve um saque e só dois estupros. Poucos? Um estupro é um estupro. Ou queremos que o terremoto nos tire também o último gesto de raiva e piedade?".
Falta-nos pouco. O espetáculo de Champs de Mars de dia há é um choque, mas de noite é uma alucinação. Aqui é onde os vivos se confundem com os mortos, a poucos passos do hospital com as pilhas de cadáveres. Champs de Mars nunca foi um parque de princípios, mas nem esse pesadelo que se tornou agora. À sombra do Palais Nacional é um espetáculo de "Day After". Não há nem a dignidade do acampamento assediado de Petionville. Aqui estamos no coração da cidade, e o campo foi entregue à iniciativa individual. Tradução: camas de pobres desesperados. Todo o fedor de Haiti está reunido aqui em cima. Render-se? Duas missionárias, também evangélicas, se desafiam à distância: basta entoar o enésimo canto. Em torno das mulheres já há um grupo de pessoas: mãos erguidas ao céu, "Deus doçura, Deus esperança". Do campo que não dorme nunca, as crianças alternam os choros com a canção: "Deus doçura, Deus esperança".
Esta noite também irá terminar. O galo começa a despertar nos becos de Delmas. Na metrópole do terceiro mundo, é um retorno ao futuro: a zona rural há tempo havia retomado a cidade, o terremoto acelerou o processo. Os galinheiros das residências também foram destruídos. Todos livres: assim como os 4 mil detidos que fugiram da prisão arruinada. Dentro de pouco tempo, esta noite também irá terminar, e todos voltarão a subir novamente o rio de rua com os travesseiros e alguns trapos debaixo do braço.
Mas há quem ainda não tenha se dado conta do sono que, por poucas horas, faz esquecer quase tudo. Um último canto, que, desta vez, parece verdadeiramente inconfundível, mas talvez é melhor ouvir duas, três, quatro vezes para não errar. Sob as estrelas do terremoto agora cantam: "Voar, voar". Só essas duas palavras: não vão mais adiante do que isso. Mas na noite dos cantos do Haiti destruído, já é um outro milagre.
Fonte: IHU - Instituto Humanitas Unisinos