Na América Latina, um fenômeno de transmissão ideológica aumenta na segunda metade da década de 1980 e triplica a sua força nos anos ’90. Trata-se da profusão, em larga escala, das premissas do pensamento único neoliberal, transmitido através das linguagens e estéticas dos conglomerados econômicos cujos produtos são os bens simbólicos do próprio capitalismo.
Por Bruno Lima Rocha*
Entramos no último mês de 2009 e nos deparamos diante de um desafio. O Brasil irá debater o novo marco regulatório da comunicação social, digladiando representantes das empresas privadas, do setor estatal e de um mosaico de movimentos populares na 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) . Se há algum consenso entre os delegados das entidades do movimento pela democracia na comunicação, é a constatação de que este setor da sociedade precisa ser democrático e inclusivo. Portanto, não é possível regê-lo sob a lógica do oligopólio, a classe de mercado típica do capitalismo a partir do último quarto do hoje longínquo século XIX.
Além deste consenso que atravessa os diversos matizes da esquerda, existem outros. Desde a mais branda e conciliadora corrente até àquela que ainda crê e tenta acumular forças para um processo de ruptura, nenhum coletivo que discuta e debata a democracia na comunicação social vê a mídia privada como a legítima para intermediar, balancear e antepor às mil versões do cotidiano de nossas sociedades complexas. Em termos clássicos da política, os conglomerados de comunicação já não podem exercer um de seus papéis do pacto liberal-conservador que cria a moderna república ocidental.
Pela divisão de poderes das repúblicas ou monarquias constitucionais após a Revolução Gloriosa (Inglaterra-Escócia-Gales, o processo se inicia em 1640, tem seu ápice entre 1685-1689, cujo sistema fundante nasce em 1694) e a Revolução Popular na França (1789-1799) haveria, no mínimo, três poderes, sendo que dois de alguma forma eleitos. A saber, o Poder Executivo (na maioria das vezes eleito de forma direta ou indireta); o Poder Legislativo (o Parlamento eleito em seu primórdio através de voto censitário) e o Poder Judiciário (onde os magistrados teriam algum critério meritocrático para o exercício da função). Nesta constelação de balanços, checagens e “equilíbrios”, caberiam à imprensa livre o exercício do 4º Poder. Este, não eleito, seria exercitado pelo maior número de cidadãos alfabetizados e alimentaria uma esfera pública de debates e polêmicas.
Em tese, esta seria a função da mídia em geral, e do jornalismo em particular, para o arranjo dos poderes de tipo liberal-burguês. Mesmo se, em algum momento da história, este tipo-ideal habermasiano de sociedade chegou a se materializar, isto já não se verifica mais. Já com o advento da sociedade de massas, os exercícios de atributos das indústrias culturais tornam-se outros, sendo portadores e transmissores de cultura na forma de estética e representação, transitando e fazendo circular bens simbólicos que reforçam os alicerces do sistema capitalista. O modelo evolui e a inexorável marcha das fusões de conglomerados de capitais torna a censura corporativa uma regra explícita embora não dita. Já na década de ’60, do século XX, os setores mais lúcidos da esquerda afirmavam que “o senso comum é a condensação das ideias dominantes”. A fusão entre circulação de mercadorias, significação de valores e a fabricação de consensos dá a base dos afazeres dos grupos midiático-culturais no Ocidente do mundo.
Em nosso Continente, o mito da imprensa como bastião da liberdade resiste um pouco mais. Os embates entre os regimes ditatoriais militares e as atividades jornalísticas e artísticas reforçam o papel da censura de Estado através da exceção. Passadas as ditaduras os meios de comunicação recobram sua importância para a garantia da governabilidade e passam a ser o bastião na luta de tipo restauração conservadora pelo desmonte dos serviços públicos fornecidos pelo aparato do Estado Nacional-Desenvolvimentista ou do que dele restara.
Com o advento da reação neoliberal na Inglaterra e nos Estados Unidos (com a vitória respectiva de Thatcher e Reagan) e a derrota do Bloco Soviético e do Capitalismo de Estado (à exceção da China que se alia aos EUA já nos anos ’80), o inimigo visível dos conglomerados de comunicação de massa passa a ser os direitos históricos das maiorias latino-americanas, com atenção especial na possibilidade de destruição dos direitos adquiridos pela classe trabalhadora após mais de quarenta anos de confronto (da última década do século XIX aos primeiros trinta anos do XX).
O modus operandi do capitalismo periférico no Continente atravessa o modus vivendi e a capacidade de percepção de maiorias analfabetas, semianalfabetas e, no caso brasileiro, com déficits históricos de cognição. Diante deste terreno fértil, apesar da resistência popular que sempre ocorre, o arsenal da mídia corporativa cria eufemismos nefastos como “flexibilização”, “modernização das relações de trabalho”, “custo Brasil”, “agilidade nos licenciamentos ambientais” e outras barbaridades. Convidam o povo para dançar na democracia liberal e depois expulsam simbolicamente do baile os elementos indesejáveis. Não por acaso, os conglomerados de mídia organizados em estruturas como a Sociedad Interamericana de Prensa (SIP), no Grupo Diários América (GDA), dentre outras alianças, são hoje, no capitalismo cognitivo, o inimigo mais visível dos agentes sociais em luta.
Hoje, independente da vontade dos executivos de grupos de mídia ou transnacionais de telefonia, sua legitimidade como 4º poder está mais que abalada. No longo prazo, vencer esta luta é afirmar outro modelo de democracia.
*Professor-doutor, cientista político com doutorado e mestrado pela UFRGS, jornalista graduado na UFRJ; docente de comunicação e pesquisador da Unisinos como membro do Grupo Cepos; editor do portal Estratégia & Análise
Fonte: Revista IHU Online