* Por Valério Cruz Brittos
Da chegada da televisão ao Rio Grande do Sul, com a TV Piratini, de Porto Alegre, em 20 de dezembro de 1959, até hoje, há um salto, que ultrapassa esta mídia e envolve toda a vida social. Durante quase três anos, a TV Piratini, canal 5, ligada aos Diários e Emissoras Associadas, reinou sozinha no “mercado” de televisão do Estado, na verdade uma ficção, pois não existia um setor estruturado. Hoje uma infinidade de emissoras abertas concorrem com canais pagos e outras formas de distribuição de audiovisual, como a internet, caracterizando a fase da multiplicidade da oferta.
Apesar de seus desencontros e encontros, na relação com o “ser brasileiro” (ou justamente por isso), o Rio Grande do Sul tem tido um papel importante no desenvolvimento da televisão nacional. Assim, foi o quarto Estado brasileiro a receber uma emissora de TV, depois de São Paulo (1950), Rio de Janeiro (1951), Paraná e Minas Gerais (ambos 1955). Em 1972, foi palco da primeira transmissão em cores, direto da Festa da Uva, em Caxias do Sul, e, em 2008, Porto Alegre foi a sexta cidade brasileira a implantar a TV digital.
Os primórdios da televisão no Estado, de uma única opção, correspondiam a um modelo geral de oferta cultural em patamar reduzido. O número de emissoras de rádio era menor, a FM inexistia e a internet também não. Se não havia shopping centers e o número de restaurantes e demais aparelhos de lazer e cultura era bem menor, assim como a posse de telefone (dentre outros indicadores), a sociabilidade era mais presencial e menos dependente da mídia, numa sociedade com baixa violência, distâncias mais curtas e menor complexação.
Mas desde cedo o novo meio apresentou enorme impacto. Enquanto aumentava o número de televisores, as sessões de cinema diminuíam de público, e o rádio deixava de ser o grande ponto de encontro domiciliar. Num primeiro momento, a TV implicou “televizinhos”, alterando laços de vizinhança, que passava a se reunir nas casas próximas não mais para conversar sobre temas gerais, mas para assistir à televisão. Com isso, os proprietários de televisores distinguiam-se socialmente, o que estimulou a venda de aparelhos.
As mudanças chegaram ao mercado de trabalho. Novas profissões foram criadas, envolvendo a manipulação de imagens (câmeras, iluminadores, diretores, etc.) e a apresentação de conteúdos (palavra não usada na época), criando celebridades, entre garotas-propaganda e apresentadores em geral. Muitos dos nomes do star-system televisivo local vinham do rádio, que primeiramente emprestou seus profissionais ao novo meio e na sequência grande parte de seus públicos e anunciantes.
O Rio Grande do Sul acabou sendo um terreno fértil para o desenvolvimento da televisão, tanto que, três anos depois, em 1962, surgiu a segunda emissora porto-alegrense, a TV Gaúcha, canal 12, atual RBS TV. Já em 1969 foi inaugurada a TV Caxias, hoje RBS TV Caxias do Sul, abrindo um modelo de rede regional no interior pioneiro no país, que inspirou outros grupos e unidades federativas. O número de emissoras porto-alegrenses geradoras para parte do Estado seguiu ampliando-se, com as TVs Difusora (1969), Educativa (1974), Guaíba (1979) e Pampa (1980), até chegar à atualidade, com um grande número de canais ocupando também a faixa UHF.
O pioneirismo da televisão do Rio Grande do Sul, na definição de um modelo de expansão pelo interior, culminou na Rede Regional de Notícias, quadro do Jornal do Almoço, lançado em 1979. Nele, as matérias jornalísticas produzidas pelas emissoras do interior passaram a ser veiculadas no plano estadual a partir da RBS TV de Porto Alegre, quando o fluxo tradicional era (e ainda é) dos conteúdos locais serem gerados apenas para a área de cobertura do canal. Não se pode descartar o papel desse tipo de produto no contato entre os “vários gaúchos” que compõem o Estado.
Ainda no plano do ineditismo, precisa ser lembrado o próprio Jornal do Almoço, cuja estreia ocorreu em março de 1972. A ideia (do mineiro Clóvis Prates) de um programa de televisão no período do almoço, então uma faixa de programação pouco valorizada e ocupada por atrações estrangeiras, criou o hábito de assistir à TV em mais um horário. A experiência inspirou emissoras em todo o país, inclusive a Rede Globo, que hoje mantém os Praças TV – 1ª Edição em todas as suas filiadas e afiliadas. Programação local na hora do almoço virou uma regra no país, de Sul a Norte, independentemente da rede.
Esse pioneirismo levou a televisão gaúcha a protagonizar várias iniciativas de programação centrada em atrações locais. A desvinculação de redes não foi o melhor caminho empresarial, devendo ser compreendida face às dificuldades do Estado de inserção nacional: a pseudoindependência seria a tentativa de afirmação das atribuídas especificidades do Rio Grande. Assim, destaca-se a trajetória da TV Difusora, hoje TV Bandeirantes (que legou programas como o antológico Portovisão, criado um ano após o Jornal do Almoço, sua matriz, com profissionais vindos do JA e novos talentos), apesar de sua relação com a Record e a TV Rio, formando a fracassada Rede de Emissoras Independentes (REI).
No entanto, a principal experiência de programação desvinculada de redes foi desenvolvida pela Guaíba, inicialmente com programas como Guaíba ao Vivo e Pergunte à Guaíba e posteriormente com realizações independentes, como o Câmera 2. Tal sistema permaneceu até 2007, quando a Guaíba foi comprada pela Record, uma mudança inevitável, já que a atuação fora de rede é de difícil viabilidade econômica. Mas na faixa UHF e com sinal parcialmente fechado, exclusivo para operações pagas, desde 1995 a TVCOM investe no conteúdo local, contando com a sinergia de outras empresas do Grupo RBS.
A televisão colaborou decisivamente para a conformação do mercado publicitário gaúcho, com o modelo de rede regional tendo um papel fundamental para o incremento do setor no Interior, arejando o sistema como um todo. Nesses 50 anos, o profissionalismo substituiu as relações baseadas no voluntarismo e no improviso, moldando uma TV que deve preparar-se para enfrentar novos desafios, não só porque há mais canais televisivos disputando a atenção da audiência e, em decorrência, publicidade, mas essencialmente porque, com a digitalização, o próprio conceito de televisão muda e o serviço passa a ser oferecido por uma série de tecnologias, com força na internet.
* Professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da UNISINOS, coordenador do Grupo de Pesquisa CEPOS, pesquisador do CNPq e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela FACOM-UFBA. E-mail: val.bri@terra.com.br.
Fonte: Zero Hora